São Paulo, quinta-feira, 03 de setembro de 2009
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FAMÍLIA

Dupla personalidade

Na presença dos pais, crianças são mais birrentas, dão mais vazão às emoções e questionam as ordens; sem perceber, adultos podem contribuir para esse comportamento

Rafael Hupsel/Folha Imagem
Os gêmeos João e Amanda Moraes, 4, que se comportam bem na escola e como avô, mas não obedecem às ordens da mãe

RACHEL BOTELHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Diante de comentários elogiosos sobre o comportamento do rebento feitos por uma professora, um vizinho ou um parente mais distante, que pai ou mãe jamais se questionou: será que nós estamos falando da mesma criança?
A "dúvida" tem fundamento: junto aos pais, as crianças revelam facetas e extravasam emoções que permanecem à sombra quando estão na presença de adultos que não participam de sua intimidade -em geral, todos os demais. "Elas esperam que os pais tolerem sua insegurança, sua demanda. Com os outros, não têm necessidade nem esperança de que isso aconteça", afirma a psicoterapeuta Magdalena Ramos, autora do livro "E Agora, o que Fazer? A Difícil Arte de Criar os Filhos" (ed. Ágora).
Os gêmeos Amanda e João, de quatro anos, filhos da engenheira química Andréa Becker, 38, são protagonistas frequentes de uma cena como a descrita no primeiro parágrafo deste texto. "Quando meu pai sai com eles, diz que não dão nenhum trabalho. A professora fala que a Amanda é aplicada e que o João presta atenção, mas eles não me deixam fazer nada em casa", lamenta a mãe.
Para a professora de psicologia e psicanálise da USP e da PUC-SP Miriam Debieux Rosa, na relação com os pais a criança tem uma tarefa importante para o seu desenvolvimento. "Ela precisa estabelecer um modo próprio de ser, tentando mudar ou reforçar a ideia que os pais fazem dela", explica.
A intensidade dos sentimentos envolvidos na relação entre pais e filhos e a atenção muitas vezes insuficiente por parte dos primeiros devido à correria cotidiana também desencadeiam tensões e aborrecimentos, na opinião da psicanalista e professora da PUC-SP Silvana Rabello. "Há promessas não cumpridas, o ciúme do irmão. A criança reage ficando irritadiça, agressiva", diz.
Por limitação da idade, ela tem dificuldade de expressar descontentamentos, medos e angústias por meio de palavras, partindo para o enfrentamento, o choro, a manha. E, quanto mais nova a criança, mais comuns essas situações.
Embora seja difícil lidar com qualquer tipo de descontrole por parte dos filhos, para os pais não há nada mais irritante do que a birra. Mas, de acordo com os especialistas, esse comportamento indesejado se deve, em grande parte, a atitudes dos próprios pais.
"Eles não aguentam ver a criança chorar e cedem. Ela percebe e se aproveita. "Será que se eu insistir um pouco o pai deixa?'", afirma Debieux Rosa, para quem birras frequentes são sinal de problema na relação entre pais e filho.
A falta de coerência nas regras -nesta semana pode, na outra, não- exerce um grande peso nesse comportamento. "A criança precisa perceber a regra para internalizá-la. Se for muito variável, ela fica dependente da vontade do outro e se torna muito sedutora para conseguir o que quer ou força para ver até onde o pai cede", diz.
Para Silvana Rabello, quando os conflitos entre pais e filhos tornam-se recorrentes, o ideal é que os adultos se auto-observem para tentar identificar o que provoca o mau comportamento na criança. "Acho importante que os pais se enxerguem e tentem descobrir como estão contribuindo para esse desgaste", afirma.
Outro desafio que os pais devem encarar é tentar distinguir uma situação angustiante para a criança -quando ela precisa de acolhimento- da birra, que exige firmeza para ensinar a lidar com frustrações. "A manifestação às vezes é parecida, mas o que está em jogo é muito diferente", diz Debieux Rosa.
Nas situações de angústia, o papel dos pais é o de dar apoio e de apontar as raízes desse sentimento. "Isso exige explicação, presença, uma gradação para que ela se acostume à situação aos poucos. Eles devem questionar a criança e tentar se colocar no lugar dela. Ao conversar, a angústia diminui."
Seja durante um ataque de choro, seja em uma manifestação de descontentamento, os adultos não podem reagir a atitudes inadequadas com mais irritação ou descontrole. "Eles precisam responder com firmeza e autoridade, que não tem a ver com autoritarismo, e ter um comportamento coerente", acredita Magdalena Ramos.
Quando a crise está instalada, e a criança, fora de controle, o mais indicado é guardar o discurso para mais tarde. "É preciso segurá-la para que não se machuque e para que possa se acalmar e escutar o que os pais estão falando", diz Debieux Rosa. Não é preciso violência -bastam firmeza e convicção de que o limite é necessário.


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