São Paulo, quinta-feira, 03 de dezembro de 2009
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OUTRAS IDEIAS

Anna Veronica Mautner


Não foi por querer


[...] POR QUE UMA MÃE ESQUECE SEU BEBÊ NO CARRO PORQUE A ORDEM DE SUAS TAREFAS FOI ALTERADA? PORQUE ESTAVA NO AUTOMÁTICO, E NÃO NO ALERTA

Levados às últimas consequências, quase todos os eventos desagradáveis ou mesmo trágicos podem ser atribuídos a erro humano, o famoso "errar é humano". Se assim fosse, teríamos que perdoar muitas quedas de avião, engavetamentos fatais e, por que não?, também a morte de criancinhas esquecidas em carros... Tudo ocorre sem querer. Mas as consequências não deixam de existir.
Por que se erra tanto? Qual é a origem de tantos erros graves e por que esses comportamentos vão ficando cada vez mais frequentes? Quase sempre não é de propósito mesmo, pois tantas vezes o próprio autor se aleija ou morre em circunstâncias que não me parecem obrigatoriamente comportamentos autodestrutivos ou suicidas.
Atribui-se a estresse, quebra de rotina, excesso de informações -tudo isso atabalhoando nossa mente e atenção. Isso tudo é verdade. O fato é que o número de erros nesse mundo moderno vem se avolumando e o rol das explicações explica pouco. A tragédia do Rodoanel, os desconfortos trazidos pelo apagão não são provavelmente consequência de uma única desatenção. Com certeza, resultam da somatória de um sem-número de pequenas quebras de rotina na vida de cada envolvido. Mas como viver sem rotina? Cotidiano sem rotina é impossível. Cuidar do organismo, por exemplo, é feito de uma série de ações, cuja ordem de entrada em cena depende de cada um. Mas não somos máquina.
Por que uma mãe amantíssima esquece seu bebê no carro só porque a ordem de suas tarefas diárias foi alterada? Porque estava no automático, e não no alerta. O mesmo vale para o motorista não alerta quando em velocidade na estrada. Cada vez mais distantes de nós mesmos, podemos não perceber às 8h10 da manhã que esquecemos de deixar o bebê às 7h10 na creche. É a distância entre a mente e as sensações que vai ficando cada vez maior e que nos afasta de nós mesmos, tornando-nos meros respondentes apenas aos estímulos presentes na hora da ação. Uma criança que não chora não chama nossa atenção. E a mãe que estava no trabalho, quão presente está, se ele for monótono?
Os educadores, pedagogos e psicólogos educacionais precisam cada vez mais focar esse ser só, isolado, sua rotina e a presença disso tudo no fluxo de vida. É preciso desenvolver exercícios para evitar esses desligamentos, tantas vezes fatais. Se fomos capazes de criar condições e comportamentos próprios à devoção, ao contato com o nirvana, à observação das estrelas, por que não criá-los para adaptar o homem que somos todos nós para viver nesse novo mundo -em que a quantidade de informações, estresse, velocidade, ausência de poder criam tanta tragédia? Por que nós não desenvolvemos recursos educacionais para evitar distrações fatais?
Quando o mundo muda, temos que achar outros jeitos. Parar o mundo não dá.
É preciso educar um homem capaz de eficiência neste mundo, nosso mundo, sem que nos transformemos em máquinas automáticas.


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br

Leia na próxima semana a coluna de Dulce Critelli


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