São Paulo, quinta-feira, 04 de janeiro de 2007
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S.O.S. família - Anna Verônica Mautner

Sonhos de mãe

[...] Os ciclos de vida passam por mutações, mas isso ocorre lentamente; nada parecido com o lançamento de celulares e de TVs

Desde que sou gente escuto mães, orgulhosas de si mesmas, contando com brilho nos olhos como conseguem orientar os filhos e afastá-los daquilo que consideram péssimos hábitos. Até parece que as mulheres, ao se tornarem mães, elaboram uma figura de filhos ou filhas que devem ser assim e fazer assado. Infelizmente, eles quase nunca obedecem aos sonhos dos pais.
"Mas ele passa o dia na frente da televisão se a gente deixar." "Ele não larga os joguinhos nem para comer." "Criança não pode ficar parada." São inúmeras as frases a partir das quais se reconstitui facilmente a imagem idealizada dos pais. O mais comum é que o filho ideal seja aquele que se movimenta, estuda, tem muitos amigos, come bem, dorme, conversa... O filho ideal é o arremedo do vir a ser um executivo ideal, aquele que as multinacionais desejam.
Um indivíduo bem-sucedido deve, de fato, ser muitas coisas para dar certo no emprego. O problema é que exigimos que as crianças sejam perfeitas em casa, na escola, com os amigos e onde mais circularem. Isso não é vida, é quase um cárcere.
O adulto, seja executivo ou artesão, só é regido pelas regras do trabalho nas horas de vida profissional. A profissão das crianças é crescer, aprender e se desenvolver, e isso ocorre sem descanso. A tão propalada privacidade, nesse esquema, vira fumaça ou é escondida.
Os adultos esquecem que eles não são tão adequados em todas as instâncias de suas vidas como desejam que suas crianças sejam. Esse treinamento, a vigilância ininterrupta e a avaliação constante só podem levar a transgressões.
Não quero ameaçar, e sim chamar a atenção dos pais para que percebam como as crianças não conseguem ter segredos. Ter segredo é inventar, é imaginar, é ser criativo. O senso de responsabilidade dos pais gera desejo de padronização. Eles temem que a falta de vigilância permita que os jovens se esquivem daqueles bons hábitos que deverão gerar bons cidadãos.
Os adultos gostariam de descobrir em todos os seres sua capacidade criativa, mas ela deve ocorrer dentro de normas.
A criança sonhadora, que gosta de sua casa, que se satisfaz em jogar consigo mesma, que gosta de observar o mundo pela tela do cinema ou da televisão, é vista pelos pais como marcada para o insucesso. Se, por outro lado, ela não pára, vive com a molecada e desdenha das atividades solitárias, estamos diante de outro problema de ainda maior gravidade aos olhos dos ansiosos pais.
Que tal permitir que cada criança viva a seu jeito o inevitável desenvolvimento pessoal? Aí temos que nos haver com os limites: o conteúdo escolar tem que ser acompanhado, não se pode destratar os outros etc. Com meia dúzia de princípios gerais, que tudo têm a ver com a vida futura, já temos as balizas dentro das quais todos podemos ser livres.
Conheço um sem-número de tímidos que a certa altura da vida viraram até assanhados. Conheço também quem não mudou muito. E daí? Se todos ganhássemos os primeiros lugares em tudo, quem teria o quinto ou o centésimo lugar?
Evite transmitir a idéia "deste jeito você não vai pra frente" -isso é castrador. Se formos capazes de transmitir que tal jeito faz o artesão, o outro jeito faz um padre etc., a criança poderá perceber o que ela quer e o que ela não quer.
As balizas evitam a marginalização e ajudam o jovem a se encontrar. Vigilância larga e distante, porém presente, é mais eficiente que uma prisão. Cuidado: prisão muitas vezes leva a explosão.


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br


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