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S.O.S. família - Anna Verônica Mautner
Sonhos de mãe
[...] Os ciclos de vida passam por mutações, mas isso ocorre lentamente; nada parecido com o lançamento de celulares e de TVs
Desde que sou gente
escuto mães, orgulhosas de si mesmas,
contando com brilho
nos olhos como conseguem
orientar os filhos e afastá-los
daquilo que consideram péssimos hábitos. Até parece que as
mulheres, ao se tornarem
mães, elaboram uma figura de
filhos ou filhas que devem ser
assim e fazer assado. Infelizmente, eles quase nunca obedecem aos sonhos dos pais.
"Mas ele passa o dia na frente
da televisão se a gente deixar."
"Ele não larga os joguinhos
nem para comer." "Criança não
pode ficar parada." São inúmeras as frases a partir das quais
se reconstitui facilmente a imagem idealizada dos pais. O mais
comum é que o filho ideal seja
aquele que se movimenta, estuda, tem muitos amigos, come
bem, dorme, conversa... O filho
ideal é o arremedo do vir a ser
um executivo ideal, aquele que
as multinacionais desejam.
Um indivíduo bem-sucedido
deve, de fato, ser muitas coisas
para dar certo no emprego. O
problema é que exigimos que as
crianças sejam perfeitas em casa, na escola, com os amigos e
onde mais circularem. Isso não
é vida, é quase um cárcere.
O adulto, seja executivo ou
artesão, só é regido pelas regras
do trabalho nas horas de vida
profissional. A profissão das
crianças é crescer, aprender e
se desenvolver, e isso ocorre
sem descanso. A tão propalada
privacidade, nesse esquema, vira fumaça ou é escondida.
Os adultos esquecem que
eles não são tão adequados em
todas as instâncias de suas vidas como desejam que suas
crianças sejam. Esse treinamento, a vigilância ininterrupta e a avaliação constante só podem levar a transgressões.
Não quero ameaçar, e sim
chamar a atenção dos pais para
que percebam como as crianças
não conseguem ter segredos.
Ter segredo é inventar, é imaginar, é ser criativo. O senso de
responsabilidade dos pais gera
desejo de padronização. Eles
temem que a falta de vigilância
permita que os jovens se esquivem daqueles bons hábitos que
deverão gerar bons cidadãos.
Os adultos gostariam de descobrir em todos os seres sua capacidade criativa, mas ela deve
ocorrer dentro de normas.
A criança sonhadora, que
gosta de sua casa, que se satisfaz em jogar consigo mesma,
que gosta de observar o mundo
pela tela do cinema ou da televisão, é vista pelos pais como
marcada para o insucesso. Se,
por outro lado, ela não pára, vive com a molecada e desdenha
das atividades solitárias, estamos diante de outro problema
de ainda maior gravidade aos
olhos dos ansiosos pais.
Que tal permitir que cada
criança viva a seu jeito o inevitável desenvolvimento pessoal? Aí temos que nos haver
com os limites: o conteúdo escolar tem que ser acompanhado, não se pode destratar os outros etc. Com meia dúzia de
princípios gerais, que tudo têm
a ver com a vida futura, já temos as balizas dentro das quais
todos podemos ser livres.
Conheço um sem-número de
tímidos que a certa altura da vida viraram até assanhados. Conheço também quem não mudou muito. E daí? Se todos ganhássemos os primeiros lugares em tudo, quem teria o quinto ou o centésimo lugar?
Evite transmitir a idéia "deste jeito você não vai pra frente"
-isso é castrador. Se formos
capazes de transmitir que tal
jeito faz o artesão, o outro jeito
faz um padre etc., a criança poderá perceber o que ela quer e o
que ela não quer.
As balizas evitam a marginalização e ajudam o jovem a se
encontrar. Vigilância larga e
distante, porém presente, é
mais eficiente que uma prisão.
Cuidado: prisão muitas vezes
leva a explosão.
ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
amautner@uol.com.br
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