São Paulo, terça-feira, 04 de janeiro de 2011
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QUEM MEXEU NO MEU LIXO?

Por que é tão difícil se desapegar de papéis, roupas velhas, eletrodomésticos quebrados...

Paula Giolito/ Folhapress
A escritora Letícia Braga, 39, tem só o essencial em sua casa, no Rio

JULIANA VINES
DE SÃO PAULO

Não existe vida nem história sem objetos, dizem os antropólogos. Isso explica os museus, as coleções de selo e até a pilha de revistas no canto da estante.
Não explica, porém, como e por que cada vez mais há quem adore (e estoque) bugigangas que, segundo a definição do dicionário, já deveriam estar no lixo.
"Objetos são muito mais simbólicos do que funcionais. Eles têm valor afetivo", diz o antropólogo Everardo Rocha, da PUC-Rio.
"Cada um quer ser curador da própria vida, ter uma coleção imensa de objetos. Muitas pessoas não sabem mais o que é lixo e o que não é."
A antropóloga e pesquisadora da Unicamp Valéria Brandini diz que os objetos carregam escolhas. Por isso é tão difícil jogar fora algo que, para os outros, não passa de quinquilharia.
"Livrar-se de uma roupa velha pode significar perder uma parte de você, mesmo sabendo que aquilo pode ser útil para alguém."

EU OU O LIXO
A princípio, não há nada de errado em acumular coisas. Até que suas coleções sejam tantas que passem a incomodar alguém.
O comerciante Sérgio Valente, 42, não aguentava mais viver junto com as roupinhas de bebê de seus filhos, já adolescentes.
Sua esposa, Neide, 41, publicitária, fazia questão de guardar tudo. Tinha pilhas de roupas de todos os tamanhos (para usar se engordasse), utensílios de cozinha velhos e congelados vencidos.
"Ela é desorganizada e dizia que não tinha tempo para arrumar. Dei um basta e insisti para contratarmos alguém que ajudasse nisso."
Foram 11 dias de trabalho de uma especialista em organização e mais de 60 sacos de lixo de cem litros. E muitas coisas ainda ficaram.
De acordo com a psiquiatra Ana Gabriela Hounie, da Associação Brasileira de Psiquiatria, o colecionismo (mania de guardar objetos), quando em excesso, pode ser sintoma de transtorno obsessivo-compulsivo ou estar associado a depressão.
Essas pessoas guardam dúzias de garrafas PET, escovas ou pilhas de enlatados.
"Sempre há uma justificativa. Elas dizem que pode ser útil, que vão usar no futuro. Mas, no fim, nunca usam."
O psiquiatra Alvaro Ancona de Faria, da Unifesp, explica que ter um histórico de dificuldades financeiras pode desencadear o problema.
"É um tipo de insegurança. Como se ela precisasse ter gasolina de reserva mesmo com o tanque cheio."
Segundo Hounie, é difícil diferenciar o colecionismo saudável do transtorno. Muitas vezes, além de guardar, a pessoa compra sem controle.
Os casos mais extremos aparecem com a Síndrome de Diógenes -uma referência ao filósofo grego que vivia dentro de um barril.
Quem tem a síndrome vive no meio do lixo, com pouca atenção à higiene, em um ato de autonegligência.
"Há pessoas ricas assim. É um transtorno difícil de ser tratado porque quem tem não se incomoda", afirma a psiquiatra Bárbara Perdigão, autora de um artigo sobre o assunto publicado na última edição do "Jornal Brasileiro de Psiquiatria".
Muitas vezes, nem terapia resolve. E, quando a casa é limpa, pouco tempo depois já volta a ficar como antes.

SEM LUXO
No fim de 2008, o empresário e escritor americano Dave Bruno, 39, decidiu que ia tentar viver com apenas cem objetos pessoais durante o ano seguinte.
Foi o que ele chamou de "100 Thing Challenge" (o desafio das 100 coisas).
O desafio foi vencido sem dificuldades, diz ele. Tanto é que, mesmo depois de terminá-lo, continua vivendo com pouco. Na última contagem, em agosto de 2010, tinha 94 pertences, incluindo as peças de roupa e descontando meias e cuecas.
"Eu não acho que há alguma coisa sem a qual eu não poderia viver. Só não me livraria da minha aliança", disse ele à Folha.
A escritora Letícia Braga, 39, decidiu viver com pouco depois de perder o marido e se ver em uma casa cheia de coisas que não usava.
Mudou para um apartamento bem menor e deixou para trás móveis, revistas, eletrodomésticos e roupas.
A experiência rendeu um livro: "O Prazer de Ficar em Casa" (Casa da Palavra, 80 págs., R$ 14,90).
"Tenho um fogão de quatro bocas e quatro panelas. Tenho só uma gaveta de utensílios, e olha que gosto de cozinhar", diz.

ENTÃO LIBERA
Não é preciso ser tão minimalista, mas para a filosofia chinesa do Feng Shui, já passou da hora de dar destino às coisas inúteis que você insiste em dizer que não são lixo.
"Objetos sem utilidade ocupam espaço físico e mental e dificultam a organização das ideias", diz Maria Elena Passanesi, especialista em cosmologia chinesa.
Para a organizadora Ingrid Lisboa, bagunça é sinal de que algo está sobrando. "O descarte é o primeiro passo da organização", afirma.
Segundo ela, todo mundo sempre tem algo no fundo do armário que não usa. Mesmo as pessoas mais organizadas e menos consumistas.
"Roupa velha é o que mais guardam. A peça não serve, está fora de moda, e a pessoa pensa que vai voltar a usar um dia. Só se for a uma festa do ridículo."


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