São Paulo, quinta-feira, 04 de julho de 2002
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outras idéias

michael kepp

Carência na hora da cirurgia

Nunca uma anestesia geral havia me privado de todos os sentidos, sem, no entanto, diminuir a sensação de que meu corpo seria violado

Quando o meu médico, armado com os resultados dos exames mais recentes, disse que minhas dores terríveis na barriga eram causadas por pedras na vesícula, que deveria ser removida, eu o bombardeei de tal modo com perguntas que quase perdi a voz.
Tentando me acalmar, ele me explicou que, apesar de a vesícula ajudar na digestão, era quase tão dispensável quanto o apêndice. Disse também que a remoção seria uma cirurgia simples, com quatro pequenas incisões em meu torso -uma para a microcâmera de vídeo e as outras três para cortar, pinçar e extrair o órgão. Eu sairia do hospital carioca no dia seguinte ao da internação. A recuperação seria rápida.
Ainda assim, não importando o quão simples ele fizesse a cirurgia parecer, continuava a ser uma operação. E eu nunca fora operado antes. Nenhuma lâmina jamais cortara gordura e músculos para profanar meu santuário interior.
Nunca uma anestesia geral havia me privado de todos os sentidos, sem, no entanto, diminuir a sensação de que meu corpo seria violado.
Amigos e parentes tentaram me tranquilizar, lembrando que a operação seria pouco intrusiva. Mas poucos deles entenderam a dimensão do meu medo da caixa de Pandora em que uma cirurgia se pode transformar. O que me deram eu já sabia. O que eu queria era empatia.
Algumas amigas até dispunham desse sentimento, mas em doses bem pequenas. Talvez estejam tão acostumadas a aguentar bravamente tudo, de cólicas menstruais a partos, que não podiam levar meu pequeno drama muito a sério. "Calma, não é cirurgia cardíaca de peito aberto." Era assim que soavam para mim suas frases de conforto.
Alguns amigos me deram um porto emocional seguro em que ancorar minha carência, onde eu podia me sentir menos covarde. "É normal ficar nervoso antes de uma operação", disse um amigo. "Algumas pessoas escondem melhor o nervosismo. E você não está entre elas."
De qualquer modo, uma hora antes da cirurgia, meus temores se dissiparam. Talvez por isso cirurgião e anestesista, que vieram me ver pouco antes, pareciam tão seguros de si. E por que não? O cirurgião removera mais de 4.000 vesículas. O anestesista nunca perdeu um paciente em 17 anos de profissão.
Ele trouxe até um anestesista substituto para o caso de ter um derrame ou um ataque do coração. Mas eu me perguntava quem tomaria o lugar do meu cirurgião se ele caísse duro.
Deram-me uma pílula que me deixou tão zonzo que só me lembro de sentir a mão de minha mulher apertando a minha antes de entrar na sala de cirurgia. A próxima coisa de que me lembro foi ter acordado no leito do hospital com minha mulher segurando firme a minha mão. Todo mundo que se submete a uma cirurgia precisa dessa mãozinha.
Eu me preocupara tanto e tão abertamente com a operação que, quando o cirurgião voltou ao meu quarto para me examinar, eu esperava que ele justificasse meus temores. Esperava que ele dissesse algo assim: "Sua vesícula estava tão inflamada e cheia de cálculos biliares que estava prestes a explodir. Mas conseguimos operar bem a tempo". Em vez disso, ele disse: "Sua vesícula precisava sair, e nós a tiramos". Por isso ele é um médico, e não um dramaturgo.
Felizmente, não precisei de drama para justificar meus medos diante da família e dos amigos, que começaram a me visitar e a me telefonar no início daquela noite. Todos queriam mesmo era saber se eu estava bem. A preocupação deles me fez sentir mais mimado do que jamais me sentira. Foi melhor do que uma festa de aniversário.
Ainda assim, apesar de ser muito marcante, uma operação não é algo que se queira guardar como um momento inesquecível. Por isso preferi não levar para casa meus cinco cálculos biliares -do tamanho e da cor de ervilhas- que meu cirurgião havia engarrafado para me mostrar. Um suvenir desses só me ajudaria a lembrar um evento que quero deixar no passado. Do hospital, só deveria sair eu, mais saudável.


MICHAEL KEPP, (mkepp@openlink.com.br), jornalista americano, está radicado no Brasil há 20 anos.


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