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Anna Veronica Mautner
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O CONSUMISTA SUSPENDE A SUA APTIDÃO DE PENSAR PARA SE DEIXAR LEVAR PELO GRITO DO SEU DESEJO, COMO UMA CRIANÇA
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Fique querendo
"Ah! Você quer? Pois
que fique querendo, porque querer
e ficar esperando
não fazem mal a ninguém." É
um jeito de falar infantil, até
malcriado, mas encerra uma
grande verdade. Todos sabemos que "querer não é poder".
Conseguir o que se quer depende de treinamento.
Os bebês nascem como verdadeiras máquinas desejantes,
que precisam de proteção imediatamente. O ar, o leite e o
aconchego são vitais. Pela vida
afora, temos de continuar a
querer isto ou aquilo -uns
mais, outros menos urgentes.
Esperar é um aprendizado
crucial: é assim que desenvolvemos aspectos essenciais da
vida mental. Temos de aprender a distinguir, entre as necessidades, a que tem de ser atendida já da que pode esperar.
Quando nenês, esperneamos
por tudo que queremos. Com o
tempo, distinguimos urgências
urgentíssimas de outras que
podemos protelar. Devagar, o
ato de espernear vai sendo
substituído por ensaios de pensar. Ninguém nasce pensando
-eis algo que demanda treino.
Não é um processo simples:
são muitas etapas que, ordenadas, resultam em percepções,
avaliações, julgamentos e, finalmente, pensamentos.
A imagem do desejado ganha
representação na nossa mente.
Se eu quero uma bola e não a tenho à mão, vou encucar até desistir ou conseguir. Enquanto a
tenho na mente, vou matutando jeitos de consegui-la. É nessa espera que reside a importância do "ficar querendo".
Quando quero a bola e me
dão a bola, não aprendo nada.
Se tenho de estender o braço
para alcançá-la, já preciso comparar a distância com o comprimento do meu braço. Se nem a
tenho à mão nem ao meu alcance, preciso lançar mão de outras aptidões. "Onde a bola costuma ser guardada? Quem a guarda? Quem mais joga bola?"
Essa cena é um belo exercício
de pensar. Pensar se aprende
pensando. Para desejar e realizar o desejo, temos de lançar
mão de uma grande quantidade
de conhecimentos. Não adianta
querer jabuticaba na Arábia ou
mesmo aqui, fora de época.
A partir da infância, vamos
desenvolvendo muitas aptidões que nos levam a memorizar, classificar, distinguir, tudo
para melhor vencer as dificuldades. Depois de aprender a esperar, o que não quer dizer parar de querer, nós, enquanto máquinas desejantes, temos de
lembrar uma infinidade de
"prazos de validade". Guardar
uma banana descascada na bolsa é bobagem.
Dando um salto de desejante
para consumista, defrontamo-nos com outra paisagem. O
consumista suspende a sua aptidão de pensar para se deixar
levar pelo grito do seu desejo,
como uma criança.
Outro personagem que suspende seu juízo de valor é o
acumulador. Ele não usa os
prazos de validade, a capacidade de categorizar: junta tudo,
como se fosse tudo igual.
Desejar, esperar, selecionar,
optar, julgar e rever são aptidões mentais indispensáveis
para uma harmônica relação de
troca com o mundo. Enquanto
esperamos e pensamos, estamos caminhando para a civilidade e para a autonomia.
ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed.
Ágora)
amautner@uol.com.br
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