São Paulo, quinta-feira, 04 de outubro de 2007
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Anna Veronica Mautner


[...] O CONSUMISTA SUSPENDE A SUA APTIDÃO DE PENSAR PARA SE DEIXAR LEVAR PELO GRITO DO SEU DESEJO, COMO UMA CRIANÇA


Fique querendo

"Ah! Você quer? Pois que fique querendo, porque querer e ficar esperando não fazem mal a ninguém." É um jeito de falar infantil, até malcriado, mas encerra uma grande verdade. Todos sabemos que "querer não é poder". Conseguir o que se quer depende de treinamento.
Os bebês nascem como verdadeiras máquinas desejantes, que precisam de proteção imediatamente. O ar, o leite e o aconchego são vitais. Pela vida afora, temos de continuar a querer isto ou aquilo -uns mais, outros menos urgentes.
Esperar é um aprendizado crucial: é assim que desenvolvemos aspectos essenciais da vida mental. Temos de aprender a distinguir, entre as necessidades, a que tem de ser atendida já da que pode esperar.
Quando nenês, esperneamos por tudo que queremos. Com o tempo, distinguimos urgências urgentíssimas de outras que podemos protelar. Devagar, o ato de espernear vai sendo substituído por ensaios de pensar. Ninguém nasce pensando -eis algo que demanda treino.
Não é um processo simples: são muitas etapas que, ordenadas, resultam em percepções, avaliações, julgamentos e, finalmente, pensamentos.
A imagem do desejado ganha representação na nossa mente.
Se eu quero uma bola e não a tenho à mão, vou encucar até desistir ou conseguir. Enquanto a tenho na mente, vou matutando jeitos de consegui-la. É nessa espera que reside a importância do "ficar querendo".
Quando quero a bola e me dão a bola, não aprendo nada.
Se tenho de estender o braço para alcançá-la, já preciso comparar a distância com o comprimento do meu braço. Se nem a tenho à mão nem ao meu alcance, preciso lançar mão de outras aptidões. "Onde a bola costuma ser guardada? Quem a guarda? Quem mais joga bola?"
Essa cena é um belo exercício de pensar. Pensar se aprende pensando. Para desejar e realizar o desejo, temos de lançar mão de uma grande quantidade de conhecimentos. Não adianta querer jabuticaba na Arábia ou mesmo aqui, fora de época.
A partir da infância, vamos desenvolvendo muitas aptidões que nos levam a memorizar, classificar, distinguir, tudo para melhor vencer as dificuldades. Depois de aprender a esperar, o que não quer dizer parar de querer, nós, enquanto máquinas desejantes, temos de lembrar uma infinidade de "prazos de validade". Guardar uma banana descascada na bolsa é bobagem.
Dando um salto de desejante para consumista, defrontamo-nos com outra paisagem. O consumista suspende a sua aptidão de pensar para se deixar levar pelo grito do seu desejo, como uma criança.
Outro personagem que suspende seu juízo de valor é o acumulador. Ele não usa os prazos de validade, a capacidade de categorizar: junta tudo, como se fosse tudo igual.
Desejar, esperar, selecionar, optar, julgar e rever são aptidões mentais indispensáveis para uma harmônica relação de troca com o mundo. Enquanto esperamos e pensamos, estamos caminhando para a civilidade e para a autonomia.


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br

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