São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004 |
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outras idéias anna veronica mautner Conversar é preciso
Bater papo, trocar idéias, palpitar, contar e ouvir casos. Conversa fiada constrói pessoas e histórias de vida. A mesa de refeições é o melhor lugar para jogar conversa fora. O fato desse hábito ter caído em desuso, sem grita, teve conseqüências. Mudou o jeito de cada um de nós funcionar no mundo.
Juntos em volta da mesa aprendemos o significado dos olhares, dos gestos, das entonações. Se hoje interpretamos mal, não tem importância. O amanhã e o depois de amanhã, essência da vida familiar, vai permitir que tudo se esclareça. É ainda em volta da mesa que praticamos agüentar interrupções e críticas, pois o clima é afetivo. É aí que os queridinhos ostentam privilégios, caçulas toleram serem os últimos a saberem das coisas. É no "um dia depois do outro", na mesa, que germinam as sementes do respeito mútuo. É aí que sacamos o valor dos elogios, evitando erros de avaliação. É onde percebemos o tipo de aliança entre mãe e pai, entre mãe e um certo filho ou filha etc. É no constante feedback que encontramos na mesa, que elaboramos nosso "vir a ser". É aí que dá a celebração do indivíduo de forma indolor. Pois é, só que, esse mesmo mundo que pede pessoas conscientes, flexíveis e tolerantes, que a família gerou, é o que inviabiliza esse mesmo ritual. A agenda escolar dos filhos, as exigências de trabalho dos adultos, os cursos extras, os hábitos de entretenimento etc. concorrem com a possibilidade de interação em casa. Cada um tem seu horário de ir e vir. Mãe ou pai, que quiser impor este ritual, tropeçará com outras exigências igualmente suas, como trabalhar muito, estagiar cedo, estudar o máximo, informar-se permanentemente, divertir-se o quanto dá. Evocando meu dia-a-dia de criança, vejo-me na minha casa. A gente se conhecia bem, nas profundezas da alma e nas coisas mais corriqueiras. Todos sabiam que eu gostava de sopa de macarrãozinho e que meu pai gostava de sopa de tomate. Quando chegava a sopa, sabíamos quem ia ficar contente e quem ia torcer o nariz. A vida é assim, não dá para contentar todos, mas nem por isso se saía para comer na esquina. No papo, qualquer um de nós era capaz de prever o rumo da conversa. A nossa escala de valores valorizava o bem pensar. Éramos tolerantes para quase tudo, menos para o mau uso da razão. Vejo até hoje como esse modo de ver o mundo me influencia. Lá na minha casa, o empenho era mais importante que o sucesso -e eu, até hoje, julgo assim. Outros valores encalharam no meu crivo crítico. Procuro descartá-los, por exemplo, certas atitudes elitistas. Quando estas me surgem à mente, e elas surgem, eu as jogo fora. Nem sempre dá, confesso. A maior herança dos jantares diários é minha aversão ao fanatismo e ao uso da força. Sou sensível para detectá-los. Como fanáticos não pensam, desqualifico-os. Nunca ninguém me disse lá em casa: não seja fanática. Fui tão bem treinada que até hoje não consigo sê-lo, pois qualquer atitude apontando nessa direção era descartada de imediato. Não tenho dúvida: é das famílias conversadeiras, afetivas, tolerantes e prolixas que sai gente que escolhe bem e exerce o livre arbítrio. Sem isso, somos vítimas de qualquer regime de força. Livre arbítrio semeia liberdade, torna-nos capazes de nos esquivar da dominação que os fortes querem exercer. ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora); e-mail: amautner@uol.com.br Próximo Texto: Modos: É possível mudar a orientação sexual? Índice |
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