São Paulo, quinta-feira, 04 de dezembro de 2008
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

[+]corrida

Democracia dos corpos

"Como tem gordo correndo!", surpreendeu-se um colega jornalista que acompanhou o desenrolar de parte da maratona de Nova York, no mês passado. Pois, se ele olhasse as ruas com mais vagar, encontraria ainda mais motivos para surpresa.
Como tem gente sem pernas correndo, sem braços, sem visão; como há feios, velhos, pobres, malvestidos! Há também os ricos e famosos, de corpos atléticos; há gostosonas e saradões, jovens no esplendor da forma física.
Qual coração de mãe, o asfalto a todos recebe: a corrida é o exercício pleno da democracia dos corpos. Mais: é o exercício pleno do direito de cada um fazer o que pode, dar o sangue ou trotar relaxado, oferecer o máximo ou o mínimo, desempenhar-se como for possível ou desejável.
Quando o sujeito se dispõe a enfrentar uma distância, qualquer uma, ingressa numa confraria toda especial. Passa a ser um conquistador, por pífia que outros possam considerar sua conquista.
É por isso que, muitas vezes, respondo a quem pergunta como me saí na São Silvestre ou em outra prova qualquer: "Fui o primeiro na minha categoria". De fato, cada participante participa numa faixa própria: a sua. Só ele sabe o quanto sofreu ou se divertiu, o quanto investiu de tempo e determinação. Só ele sabe quanto vale seu show, um espetáculo em que cada um é artista e público de si mesmo.
A corrida propicia ainda outra forma de igualitarismo: da mesma prova participam o profissional, o campeão do mundo, o recordista e você, o primo da vizinha e a namorada do balconista da padaria.
Nenhum de nós, provavelmente, vai disputar uma cesta com Kobe Bryant, rodar uma piscina com Phelps ou bater bola com Zidane; mas muitos desconhecidos já apareceram na TV à frente dos mais respeitados atletas do mundo...
Os corredores gostamos de anotar tempos, calcular ritmo, impor metas. Mas, na hora do vamos ver, quando largamos o corpo no asfalto e batemos perna pelo mundo, os números de desempenho pouco importam. Com banhas escorrendo por sobre o calção ou barriga de tanquinho, vamos cada um desbravando os metros que nos separam da chegada. E, uma vez conquistada a meta, é a hora de partir para o abraço, merecido fruto do suor do próprio corpo. Que se alegra qualquer que seja sua forma, idade ou capacidade.


RODOLFO LUCENA , 51, é editor de Informática da Folha , ultramaratonista e autor de "Maratonando, Desafios e Descobertas nos Cinco Continentes" (ed. Record)

rodolfolucena.folha@uol.com.br
www.folha.com.br/rodolfolucena



Texto Anterior: Saúde: Ação autolimpante
Próximo Texto: Neurociência - Suzana Herculano-Houzel: De cama
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.