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[+]corrida
Democracia dos corpos
"Como tem gordo correndo!", surpreendeu-se um colega jornalista que acompanhou
o desenrolar de parte da maratona de Nova York, no mês
passado. Pois, se ele olhasse as
ruas com mais vagar, encontraria ainda mais motivos para surpresa.
Como tem gente sem pernas correndo, sem braços,
sem visão; como há feios, velhos, pobres, malvestidos! Há
também os ricos e famosos, de
corpos atléticos; há gostosonas e saradões, jovens no esplendor da forma física.
Qual coração de mãe, o asfalto a todos recebe: a corrida
é o exercício pleno da democracia dos corpos. Mais: é o
exercício pleno do direito de
cada um fazer o que pode, dar
o sangue ou trotar relaxado,
oferecer o máximo ou o mínimo, desempenhar-se como
for possível ou desejável.
Quando o sujeito se dispõe a
enfrentar uma distância, qualquer uma, ingressa numa confraria toda especial. Passa a
ser um conquistador, por pífia
que outros possam considerar
sua conquista.
É por isso que, muitas vezes,
respondo a quem pergunta
como me saí na São Silvestre
ou em outra prova qualquer:
"Fui o primeiro na minha categoria". De fato, cada participante participa numa faixa
própria: a sua. Só ele sabe o
quanto sofreu ou se divertiu, o
quanto investiu de tempo e
determinação. Só ele sabe
quanto vale seu show, um espetáculo em que cada um é artista e público de si mesmo.
A corrida propicia ainda outra forma de igualitarismo: da
mesma prova participam o
profissional, o campeão do
mundo, o recordista e você, o
primo da vizinha e a namorada do balconista da padaria.
Nenhum de nós, provavelmente, vai disputar uma cesta
com Kobe Bryant, rodar uma
piscina com Phelps ou bater
bola com Zidane; mas muitos
desconhecidos já apareceram
na TV à frente dos mais respeitados atletas do mundo...
Os corredores gostamos de
anotar tempos, calcular ritmo,
impor metas. Mas, na hora do
vamos ver, quando largamos o
corpo no asfalto e batemos
perna pelo mundo, os números de desempenho pouco importam. Com banhas escorrendo por sobre o calção ou
barriga de tanquinho, vamos
cada um desbravando os metros que nos separam da chegada. E, uma vez conquistada
a meta, é a hora de partir para
o abraço, merecido fruto do
suor do próprio corpo. Que se
alegra qualquer que seja sua
forma, idade ou capacidade.
RODOLFO LUCENA , 51, é editor de Informática da Folha , ultramaratonista e autor de "Maratonando, Desafios e Descobertas nos Cinco
Continentes" (ed. Record)
rodolfolucena.folha@uol.com.br
www.folha.com.br/rodolfolucena
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