São Paulo, quinta-feira, 05 de fevereiro de 2004
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Comprar material escolar é aula fora da escola

Pais podem aproveitar as aquisições obrigatórias do início do ano para discutir limites e transmitir valores como responsabilidade

ANA PAULA DE OLIVEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Mochilas que não entortam as costas, canetas e lápis atóxicos, uniformes para todas as ocasiões, cadernos enfeitados com artistas e lancheiras que preservam o alimento por muito mais tempo. Todo começo de ano é assim: pais e filhos entopem papelarias, livrarias e até supermercados com listas nas mãos. É o frisson da volta às aulas. Segundo estudo da professora de política de educação infantil Maria Angela Barbato Carneiro, da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), o material escolar consome 30% do orçamento familiar no início de cada ano letivo. Mas tanta despesa pode significar mais que a alegria dos comerciantes. A aquisição de material pode ser usada para valorizar o papel da escola e da aprendizagem. "O material escolar é um instrumento de mediação entre a criança e o conhecimento. É uma ponte que os liga e um dos meios para se chegar ao fim, que é a aprendizagem", afirma Anita Lilian Zuppo Abed, coordenadora do curso de psicopedagogia do Instituto Sedes Sapientiae (SP). Para ela, se for supervalorizado, o material deixa de ser um instrumento e se torna um objetivo isolado, distorcendo o motivo pelo qual a criança vai à escola. A criança pode passar a valorizar o material em detrimento do saber. "O aluno pode perder a dimensão de que os objetos são apenas um dos muitos meios para chegar ao conhecimento."

Cheirinho bom
Na medida certa, o capri- cho na compra do material pode funcionar como um incentivo para o início do ano letivo. "Com objetos novos, o aluno pode se sentir estimulado a voltar às aulas", diz Silvia Gasparian Colello, professora de psicologia da educação da Universidade de São Paulo (USP). "Muitas vezes, o aluno relaxado, com letra de garrancho, pode usar o material escolar como um novo caminho para gostar do aprendizado", afirma a professora.
"Que delícia o cheirinho do material escolar novinho! No meu tempo, não havia tantas opções como hoje, mas não dá para esquecer. O orgulho que sentia em ir para a escola com o material novo! Era bom, fazia parte do aprender", afirma o colunista da Folha Rubem Alves, psicanalista e educador.
A tendência, porém, é que esse efeito seja passageiro. "Mas era bonito só na primeira semana, depois esculhambava tudo e os cadernos criavam orelhas", lembra Alves.
"Se a criança não tem capricho, pode até ser que se sinta mais interessada pela escola nos primeiros dias de aula, mas isso acaba com o tempo, à medida que o lápis, a borrachinha e os apetrechos escolares perdem o quê de novidade, depois volta tudo ao normal", diz Thereza Pagani ("Therezita"), educadora e colunista da Folha. Passada a fase de "encantamento" com o material, a criança continuará a estudar para passar de ano, para agradar aos pais, para passar no vestibular, e "não estudar pela curiosidade em aprender, como deveria ser", afirma Therezita.
Por mais que os pais gastem e se esmerem na lista, nenhum objeto é capaz de garantir o interesse da criança pela obtenção de conhecimento. O material escolar, porém, pode ser um instrumento para a aprendizagem também em casa -a começar pela compra. Esse momento pode servir para mediar a negociação entre pais e filhos, afirma a professora Silvia Gasparian Colello. "Faça a criança entender a diferença entre necessidade e possibilidade. Conceda daqui e aperte dali", sugere.
Compras concluídas, os pais podem usar a posse do material para transmitir valores e estimular o desenvolvimento da criança. Os educadores dão algumas dicas, mas cada família deve encontrar sua fórmula. Segundo a psicóloga e colunista da Folha Rosely Sayão, cada pai tem sua maneira de transmitir, para o filho, o sentido de ir à escola. "Pode ser para passar de ano, porque vai cair na prova, para entrar na faculdade, para ser alguém na vida ou até mesmo só para aprender."
Sayão acredita que essa transmissão de valores não deva ser feita de supetão, em uma conversa com hora marcada. No lugar de dar um sermão de volta às aulas, os pais devem demonstrar o interesse pelos estudos do filho ao longo de todo o ano.
Segundo "Therezita", os pais podem incentivar os filhos dizendo-lhes que conheceram algo novo no trabalho, que a aprendizagem acontece todos os dias ou até mesmo demostrando que eles, pais, são capazes de aprender com suas crianças. Além disso, afirma a educadora, de nada adianta explicar o real motivo do estudar se os pais não derem valor ao que o filho aprende, menosprezando suas tarefas escolares e deixando apenas à escola o dever de ensinar. "Não existe o certo nem o errado, o que falta é o bom-senso", diz ela.


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