São Paulo, quinta-feira, 05 de setembro de 2002
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outras idéias

dulce critelli

Por que ele não alcançou nossa alma


Quando não são acompanhados de palavras que os signifiquem, os atos são brutais, lembra Hannah Arendt. O autor dos atos de 11 de setembro nos legou apenas isto: atos brutais


Nossas palavras e atos, quando vistos e ouvidos (ainda que apenas por nós mesmos), não podem ser desfeitos -são irrevogáveis. Eles iniciam uma cadeia de respostas e consequências que fogem do nosso controle e tornam seus resultados imprevisíveis. Mesmo assim, permanecem sendo nossos e nos revelam. Os que nos vêem e ouvem compreendem "quem" realmente somos.
Essa é a natureza, sem exceção, de todas as ações e palavras, não importando se o gesto é apenas o de partir o pão ou o de dizer bom-dia.
Impossível não pensar nessas questões quando 11 de setembro se aproxima. Voltam à lembrança os acontecimentos que nos alarmaram, com a vida imitando o cinema. Terror. Temor. Sofremos com os parentes das vítimas e com a possibilidade de uma guerra de proporções avassaladoras. As torres tombadas, especulávamos, representariam o fim do império americano e o fim de uma era?
Contra nossas expectativas, aqueles atos se dissolveram na banalidade da vida cotidiana e até foram ridicularizados (como no último Festival de Edimburgo). Não provocaram transformação nenhuma no nosso modelo de mundo.
Não atingiram a nossa alma. Por quê?
Além das urgências da sobrevivência e das necessidades diárias, do excesso de apelos a responder, da tendência mercadológica de encobrir a originalidade das questões e de transformá-las em bens de consumo, há ainda outras razões, mais invisíveis, mas fundamentais.
Todos esperávamos que o autor dos atos de 11 de setembro se identificasse. Suspeitamos quem ele seja, o denunciamos, comprovamos sua participação, mas não o vimos vir a nós e não o ouvimos assumir a responsabilidade pelos seus atos. Ao não nos dizer "eu fiz", o autor dos atos não nos revela sua face nem seus motivos. Continuamos supondo quais sejam, mas ele não nos concede a honra de anunciar o significado das suas ações e não nos permite concordar com ele ou contestá-lo.
Como poderíamos conviver com uma realidade cujo sentido é fugidio, por não ser autenticado pelo seu autor? Que homem pode suportar uma realidade que não compreende? Que homem pode passar seus dias interagindo com "ninguém"?
Quando não são acompanhados de palavras que os signifiquem, os atos são brutais, lembra Hannah Arendt. O autor dos atos de 11 de setembro nos legou apenas isto: atos brutais. Pura violência.
Infelizmente, a resposta dada pelos Estados Unidos também não ultrapassou o limite da pura violência. Retaliação, em linguagem comum, é o que conhecemos por vingança. E vingança não gera senão vingança, perpetuando-se e jamais começando algo novo. Aliás, as ações terroristas de 11 de setembro já eram vingança.
A vingança tem como seus instrumentos a força e a violência, porque o vingador não quer estabelecer nenhum acordo, nem instaurar nenhuma forma nova de enfrentar o problema em litígio. Ele apenas quer submeter o outro a sua razão e vontade. Quer negar-lhe a autoria dos seus próprios gestos e rebaixá-lo à condição da mera obediência.
Para que os acontecimentos que principiaram em 11 de setembro não se tivessem banalizado em nossa memória e cotidiano, seria preciso que nos tivessem mostrado outro modo de lidar com a vida que não esse da violência, ao qual já estamos tão identificados.
Era preciso que aqueles atos fossem "extra-ordinários". Que nos fizessem ver que a vida de um só homem vale mais do que qualquer credo, ideologia ou religião. Que a economia se tornasse meio, e não fim dos atos humanos. Ou que estes se estruturassem sobre o desejo de criar (e não sobre o de destruir). Ou que o homem fosse visto como o anjo do homem, não como o seu lobo.
Seria preciso que um gesto ao menos fosse extraordinário. Só assim nos teria mostrado uma nova possibilidade para o viver. Só assim teria alcançado a nossa alma.


Dulce Critelli, professora titular da PUC-SP, autora dos livros "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica do Sentido", e coordenadora do Existentia Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana; e-mail: existentia@ig.com.br


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