São Paulo, quinta-feira, 05 de outubro de 2006
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Outras idéias - Anna Veronica Mautner

Homem na cozinha


[...] Eis que se cristaliza uma nova forma de segregação: ele ornamentou o próprio pedestal, e ela continuou na copa


Até pouquíssimo tempo atrás, as donas-de-casa cuidavam de tudo na casa. Dona-de-casa não era palavrão, muito pelo contrário, era uma função digna e honrada. Houvesse um viúvo ou um solteirão, ele teria uma governanta, uma antiga babá ou uma parente encarregada de cuidar da casa.
Não é difícil que haja na família de algum leitor um avô que sabia temperar um leitão ou fazer pão como ninguém. Sempre como atividade bissexta. Com a invasão da mania do churrasco, algo mudou. Foi a porta de entrada para os homens se aproximarem da cozinha.
Nos restaurantes e hotéis, onde cozinha é profissão, os chefs sempre foram homens, mas, nos lares, não. Com a chegada do churrasco, vemos os homens orgulhosos feito crianças exibindo segredos, palpites, receitas exclusivas, cortes especiais. Tudo deles, só deles.
Não posso deixar de comentar com certo humor a relação dos homens com seus fogaréus, facas e espetos. Lembremos que, já que o churrasco é feito em público, eles podem se exibir à vontade. Fazer churrasco é um grande achado, permite ao homem participação e função, sem perder a festa.
Lembremos que a função feminina não desaparece: salada, arroz e farofa continuam responsabilidade das mulheres. São também elas que põem a mesa e arrumam os pratos.
Olhando de perto, a chegada do churrasco não produziu mais do que uma ranhura insignificante. A temperatura do fogo, as labaredas, as brasas, o ponto das carnes, os espetos -tudo tão masculino! Eis que se cristaliza uma nova forma de segregação: ele ornamentou o próprio pedestal, e ela continuou na copa/cozinha.
Não que elas não tentassem tímidas aproximações do fogo pela inclusão das batatas na grelha e no espeto. Só que é ela quem limpa e descasca. A modernidade trouxe outras brechas à rígida divisão. Nas casas de campo ou de praia, a moda de fogões e fornos de pizza a lenha vai criando um universo misto. Mas, onde há fogo, o homem domina.
A diferença, parece-me, reside no fato de que eles não têm tradição familiar de culinária e elas têm. Na falta da tradição, eles buscam livros e internet, mas não falam com a avó, mesmo que ela tenha cozinhado a vida inteira em fogão a lenha.
Eles se tornam grandes consumidores de livros e novidades em termos de instrumentos. Consumir e inventar é o que o homem mais quer fazer na cozinha. A entrada, pois, do homem na cozinha vem cercada não só do fogo mas também de novidades globalizadas, importadas, caipiras ou caiçaras, mas novidades. É raro homem querer aprender com mulher. Prefere inventar a roda.
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
amautner@uol.com.br



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