São Paulo, terça-feira, 05 de outubro de 2010
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O que é isso, gente?

Eles dominaram o território, viraram o centro das atenções, ganharam regalias. Mas ainda não entraram para a raça humana, é bom avisar

Fotos Letícia Moreira/Folhapress
Carla Bruni, 2, toma banho de ofurô. R$ 45 no Pet das Meninas, em SP

JULIANA VINES
DE SÃO PAULO

Os cães estão mais humanos. Demasiadamente humanos. Com roupas e nomes de gente, vão à creche de perua escolar, passeiam no shopping, fazem sessões de spa. De melhores amigos foram promovidos a filhos.
"O cachorro é o centro de muitas famílias. É a nova televisão. É ele quem une as pessoas", diz a antropóloga Mirian Goldenberg, autora de, entre outros livros, "De Perto Ninguém é Normal".
Na casa de Ully Caroline Sousa, 27, e Alessandro Alla, 29, ele médico radiologista e ela estudante de medicina, é assim: viagens e restaurantes, só quando a Diva pode.
A mestiça de shih-tzu com maltês tem dois anos e meio e quase os mesmos privilégios de uma criança mimada da sua idade. Dorme com o casal (que não tem filhos), vai à creche de segunda a sexta-feira para ter aulas de adestramento e ganha presentes da Barbie. "Diva é a nossa filhinha", diz a "mãe".
Casais que adotam cachorros são os clientes mais fieis de Vanessa Rodrigues, veterinária dona da creche animal Cãominhando, que chega a ter 150 mensalistas fixos.
No pet shop de luxo de Felipe Faria, no shopping Cidade Jardim, em São Paulo, casais e mulheres sós são os que mais usam o serviço de fraldário, primeiro no Brasil.

COMO A GENTE
Não é preciso ir mais longe: sobram evidências para o que os especialistas chamam de antropomorfismo ou humanização -atribuir aos bichos características e sentimentos humanos.
As hipóteses para explicar o fenômeno são muitas. "A configuração da família está mudando. Cresce o número de pessoas sozinhas e com dificuldade de se relacionar", comenta Goldenberg.
Para o psiquiatra Elko Perissinotti, vice-diretor do Hospital Dia do Instituto de Psiquiatria do HC, o contato com animais de estimação tem a mesma função do contato interpessoal: suprir carências afetivas.
"É uma relação benéfica e prazerosa. O simples toque em um animal libera hormônios que aumentam a disposição para contatos sociais, entre outros benefícios."
Da brincadeira divertida para a relação pai e filho é um pulo. Segundo a veterinária e psicóloga Hannelore Fuchs (ela é uma das idealizadoras do projeto Pet Smile, de terapia assistida com animais), o grande atrativo que faz os bichos serem humanizados é que eles são fontes certeiras e inesgotáveis de afeto.
Um cão não reclama se você chegar tarde e sempre está disposto a dar uma volta. "É o relacionamento perfeito. Podemos desabafar sem receber críticas. Colocamos eles no patamar afetivo de seres humanos e preenchemos um vazio", diz Hannelore.

AMOR INCONDICIONAL
A promotora de eventos Sandra Portelo não esconde sua relação com as cadelas Carla Bruni, Isabeau e Nina: "Cachorro é o único amor que a gente compra. É amor incondicional. É polêmico, mas é assim que penso."
E gasta R$ 1.000/mês com as peruagens no pet shop.
Cecy Passos, 40, é dona e empresária da gata Nikole. A bichana de dez anos tem uma carreira de top de botar inveja em adolescentes. Assina linha de produtos felinos, abre desfiles de moda, tem site e seguidores no Twitter.
Tanta fama faz com que muita gente conheça a dona pela gata (e não o contrário). "Vou a todo lugar com ela. Somos uma só. Às vezes, é como se eu tivesse perdido a identidade", diz Cecy.
Aí é que está. O problema não é chamar de filho ou dar regalias ao bicho, segundo o psiquiatra Alvaro Ancona de Faria, professor da Unifesp.
"O problema é idealizar a relação e projetar no animal um comportamento que não é de sua natureza. Como é mais fácil de controlar, a pessoa acha que é uma relação perfeita e acaba ficando desestimulada de criar outros vínculos sociais."
Para cães e gatos, serem tratados como crianças também não faz bem. "As necessidades básicas dos animais podem ser esquecidas", diz Ceres Berger Faraco, veterinária e terapeuta animal.
Em sua clínica, a terapeuta atende famílias com "cachorros-problema". "São cães agressivos e que não podem conviver em grupo. Eles ficam assim porque são tratados como gente."
Não custa passar o lembrete de Cesar Ades, professor do Instituto de Psicologia da USP e um dos pioneiros no estudo de comportamento animal no Brasil: apesar de o contato com bichos fazer bem, nunca vai substituir a relação com outras pessoas.
"São coisas diferentes. O cachorro nos dá coisas que o ser humano não dá, e os animais não dão tudo que os humanos dão. Eles nos dão uma alegria canina. Só isso já é culturalmente válido."


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