São Paulo, quinta-feira, 05 de novembro de 2009 |
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OUTRAS IDEIAS Anna Veronica Mautner Escuto-me, logo existo
Há poucos dias, em um táxi em Nova York, surpreendi-me com o jeito do motorista que estava me levando para o aeroporto. Ele tentou conversar, mas eu não estava com vontade e ele percebeu. Acho que ele queria conversar, mas desistiu fácil e não recorreu ao celular, que é o grande refúgio da fala universal. Quando me dei conta, ele estava cantarolando. Volta e meia, fazia algum comentário sobre o lugar por onde passávamos e logo voltava a cantarolar. Durante a hora que durou o percurso, tive tempo para reavaliar as observações que tinha feito durante minha estadia. Percebi que havia passado 12 dias sem silêncio à minha volta. Quando não era alguém que falava, falava a televisão, o rádio ou o iPod. Os ouvidos de todos estavam sempre ocupados com algum som, pessoal ou coletivo, emitido por si ou por outros. Nesses dias, percebi com maior ênfase o que venho observando tanto cá quanto lá. Não era o silêncio que era aversivo, era o barulho que era atraente. Quero deixar claro que me refiro a sons que procuro ou crio, não aos que nos atingem involuntariamente, como o de motores etc. Ninguém põe em dúvida que se geram propositadamente sons numa sala. Com vários grupos conversando, a dona de casa deixa o som ligado, que ninguém está escutando, mas que encobre eventuais silêncios. É assim em toda parte. Não estou falando de fugir de si. Digo que as pessoas querem escutar permanentemente. Não é pânico de silêncio, é desejo de se ouvir, como uma invocação. Uma vez bem clara essa minha assertiva, quero dar mais um passo. Existe uma ânsia de ouvir o som que nós mesmos fazemos. Escutar a mim mesma parece ter se tornado uma condição essencial de vida. Parece que a memória do que foi dito ontem não fica. Tenho que estar me repetindo o tempo todo. Quando me escuto, confirmo que existo. O som emitido anteriormente pode até me dar uma informação, lembrar-me de um conteúdo, mas não me evoca a sensação de existir. Quando não posso dizer, pelo menos quero escolher o que vou escutar no rádio, na TV, nos iPods. Há alguns séculos, Descartes disse: "Penso, logo existo". Agora acho que temos que dizer: escuto-me, logo existo. Os jovens aderiram quase inteiramente a esse lema como atenuador da crise existencial que nos atinge quando não estamos entre conhecidos com quem podemos dialogar. No avião, no ônibus, na multidão, nas salas de espera, o ruído impede a troca. Nas reuniões de trabalho, não se ouve o outro, espera-se ansiosamente uma oportunidade de falar. A cena de alguém falando para um plenário vazio no Congresso sempre me surpreendeu, mas falar é preciso. Fala-se ainda que estamos no mundo da imagem, mas isso já era. Estamos na era do som. Esse, sim, hoje me faz saber que existo. E só porque devo ser algo retrógrada e ainda consigo pensar sem falar, meu motorista de táxi jamaicano foi obrigado a cantarolar até o aeroporto. ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) Leia na próxima semana a coluna de Dulce Critelli Próximo Texto: Pergunte aqui Índice |
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