São Paulo, quinta-feira, 06 de abril de 2006
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Outras idéias

Por que memorar?

Todo dia, aprendo algo. Vez por outra, aprendo algo importante.
Freqüentemente, aprendo algo com quem eu menos imaginava aprender.
Assim foi com "seu Tumás". Entrei na vida dele por imposição. Ele, na minha, por convite. Seus zelosos filhos entendiam, à época, que um homem, ao se aproximar dos 80 anos, não devia fazer tudo o que ele fazia: cultivar verduras e entregá-las, em uma grande cesta, aos fregueses cativos; cuidar dos pássaros, subindo e descendo de uma cadeira dezenas de vezes; andar por todos os cantos de Poços de Caldas (MG) e, principalmente, fazer aquilo que os demais não conseguiam realizar. Quando se propunha a abrir uma janela emperrada, geralmente ficava com o trinco na mão, dada a força que ainda possuía.
Mineiro da alma ao sotaque, aceitou, muito a contragosto, ouvir a opinião do "dotô". Sorte a minha. Desde esse dia, passei a colecionar seus causos, que eu o convidava a contar minutos após cada um dos nossos inúmeros reencontros.
Não era difícil estimulá-lo a falar. Bastava dar-lhe a pista do que eu queria ouvir. Algo como: "E aquela vez que o seu caminhão quebrou, à noite, na serra?"
Após uma rápida busca pela memória, abria um farto sorriso e despejava, com voz rouca e ritmada, a mesma história, com todos os detalhes, como se estivesse vivendo a situação. Meu interesse por ouvi-la ia além do conteúdo. Era a forma que me fascinava. A íntima relação entre o autor e o personagem, traduzida de forma simples e intensa, que só pode ser desfrutada ao vivo e a cores. Mímicas, interjeições, gestos, tudo fazia parte da riqueza na arte de se comunicar.
O tempo passou, e eu pude usufruir desse convívio por quase duas décadas. Muitos dos hábitos dele mudaram, mas a força nas mãos e a fluência nos causos permaneceram intactas.
Nas minhas cada vez mais raras idas até ele, fiz sempre questão de continuar o provocando.
Folgava em perceber que arquivos dele continuavam intactos. Percebi, porém, nesses muitos anos, que, dentre todas, a história que mais lhe agradava contar era a de uma cachorra, de nome Roleta, que, de tão esperta, foi capaz de encontrar uma carteira por ele perdida, ao pé da fonte, horas atrás, durante uma longa viagem a cavalo pelas matas de Minas Gerais.


Quem optar pelas memórias tristes as terá como parceiras durante toda a vida; quem preservar as mais agradáveis poderá tornar-se uma pessoa interessante

Durante o relato, seus olhos brilhavam de forma ímpar, sua respiração se alterava e, ao descrever o afago final com o qual ele premiara Roleta, depois de lhe trazer de volta a carteira, demonstrava um carinho inigualável.
Nunca tive coragem de perguntar se ele se lembrava de já ter contado dezenas de vezes aquela passagem para mim. Nem ele, de me dizer que não queria fazê-lo novamente. Ambos realizávamos aquele delicioso ritual para celebrar os nossos reencontros.
Com "seu Tumás", aprendi uma das principais razões do memorar. Em verdade nos lembramos das coisas que nos despertaram as maiores emoções. Mais do que isso, podemos escolher aquelas que mais nos interessam, construindo, com elas, o nosso próprio repertório, baseado, principalmente, nos sentimentos relacionados a cada uma das vividas situações.
Sob esse aspecto, fica mais fácil entender por que cada pessoa se recorda mais de fatos ou de períodos de sua vida e menos de outros; ou por que alguns se recordam de tantos detalhes, enquanto que outros, que viveram a mesma situação, lembram-se de pouco ou quase nada.
Temos o privilégio, muitas vezes inconsciente, de guardar apenas aquilo que queremos eternizar. A escolha é nossa. Quem optar pelas memórias tristes as terá como parceiras durante toda a vida. Quem preservar as mais agradáveis, como "seu Tumás", poderá tornar-se uma pessoa muito interessante, a despeito de não mais viver.
Não há, portanto, grandes vantagens em impor a nós mesmos ou aos demais o que deve ou não ser recordado. Muito mais interessante é reconhecer e respeitar que a memória de cada pessoa representa uma crescente e particular coleção de tudo o que lhe tocou a alma, transcendendo o tempo e a existência de cada um.

WILSON JACOB FILHO, professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas (SP), é autor de "Atividade Física e Envelhecimento Saudável" (ed. Atheneu)
@ - wiljac@usp.br



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