São Paulo, terça-feira, 06 de setembro de 2011
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OUTRAS IDEIAS

FRANCISCO DAUDT - fdaudt2@gmail.com.br

O sentido da vida, parte dois


Embora a vida não tenha razão alguma, somos nós, os donos dela, que lhe damos sentido e graça

A PRIMEIRA vez que escrevi sobre o sentido da vida, mostrei o que a natureza nos dá (quase nos impõe) sem que saibamos. Desta vez vou dizer o que podemos fazer com esta tentativa de tirania biológica.
O sentido da vida é nenhum, a menos que você entenda "sentido" como direção. OK, a direção da vida é uma só: produzir mais vida.
Fora isso, lembro-me quando meu filho, aos seis anos, me veio com esta pergunta: "Pai, qual é o sentido da vida?" Respondi: "Filho, qual é o sentido da pedra? Nenhum? Pois então, tanto a pedra quanto a vida são fenômenos da natureza, e eles não têm nenhum sentido".
Eu estava lhe dando uma resposta à altura de seus seis anos, mas de tanto ouvir essa pergunta no consultório, principalmente vinda de pessoas deprimidas, que não achavam graça em nada, muito menos sentido em suas vidas, subitamente me dei conta: embora a vida não tenha sentido algum, somos nós, os donos dela, que lhe damos sentido e graça. Por meio de uma misteriosa e inconsciente força motriz: o desejo. Não confundir com vontade, que é uma das expressões conscientes dele.
Em psicanálise, o desejo é um universo que mora em nosso inconsciente. Tudo o que fazemos é movido por ele. Freud notou que, como todos os mamíferos, nós tínhamos instintos. Mas moldados de forma única pela nossa criação. Há mamíferos que passam pelo mesmo processo (quem tem cão sabe disso).
Portanto, ele chamou nossos instintos moldáveis de "triebe", em inglês "drive", em português "impulso" (que foi mal traduzido do francês para "pulsão" ). Esses impulsos são ricamente coloridos pelas nossas experiências, de forma que o acarajé que eu adoro significa algo diferente daquele que você come, pois nossas memórias ligadas a ele são diferentes.
Quando o desejo, esta constelação de memórias ligadas ao impulso, se manifesta -e ele pode se manifestar em coisas boas como o acarajé, e em coisas sofridas como a paixão (a propósito, "passio", o latim de onde veio a paixão, só admite uma tradução: sofrimento)- e encontra seu objeto de satisfação, a vida ganha sentido, brilho e intensidade, mas é um sentido saído de nós.
Nós é que plugamos um cabo USB em alguma coisa, que a faz brilhar e ter sentido. "Não sei o que ele vê naquela sirigaita..." Claro que você não sabe, você não tem o código de memórias dele!
Eu me lembro de uma cena de "O Pecado Mora ao Lado", em que a atriz (Marilyn Monroe) define música clássica como "aquela que não tem letra", enquanto a vitrola toca meu amado Rachmaninoff nº 2, piano e orquestra.
Esses senhores mortos, ele, Bach, Beethoven, Debussy, Ravel e outros têm dado sentido à minha vida, um sabor que se perderá em duas únicas circunstâncias: quando a indesejada das gentes chegar, ou se um dia a depressão me acometer, uma doença que apaga o sentido da vida e faz muita gente se matar.

FRANCISCO DAUDT, psicanalista e médico, é autor de "Onde Foi Que Eu Acertei?", entre outros livros


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