São Paulo, terça-feira, 06 de setembro de 2011
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CORRIDA

RODOLFO LUCENA - rodolfo.lucena@grupofolha.com.br

Um pouco de gentileza


Uns desembestam a correr, cortar e empurrar, como se disputassem o pódio olímpico

NÃO SEI explicar direito, talvez porque eu mesmo não tenha entendido exatamente o que aconteceu. Mas vou tentar: ela vinha por trás, pela minha esquerda, e começou a me ultrapassar. Eu não a notei, e acho que ela também não observou meus movimentos. O certo é que, no instante seguinte, a ponta de meu pé esquerdo tocou na parte de baixo do seu calcanhar direito por décimos (centésimos) de segundo.
"Você viu que quase me deu uma rasteira?", virou-se ela, indignada, para mim. Pedi desculpas, mas não muito satisfeito; afinal, foram os dois que quase se chocaram. Tudo ficou no quase; nada aconteceu, ainda que o risco efetivamente tenha existido. Cada um seguiu, afinal, em paz.
Pequenos choques como esse, ou quase-acidentes, acontecem toda hora em corridas de rua, especialmente nas mais movimentadas -e, hoje, quase todas fervilham de gente. É importante que o corredor desenvolva ainda outra habilidade, além da de carregar o corpo à frente com elegância e na rapidez possível: prestar atenção nos outros, nos que estão a seu lado, nos que estão à frente, até -como se viu- nos que chegam solertes para ultrapassagens inesperadas.
Estar atento é, acima de tudo, uma questão de sobrevivência e de bem-estar nas corridas.
Certa vez, em uma maratona, um sujeito que corria na minha frente parou sei lá por quê. Tive de travar em cima dele, o que me desestruturou todo, até dei um mau-jeito no pescoço e fiquei com um torcicolo que levou quase um quilômetro para desenroscar.
Além disso, cada um deve treinar a paciência e estar disposto a praticar a nobre arte da gentileza com seus semelhantes. Pois há de tudo na corrida de rua. Gente que assoa o nariz apertando uma das ventas com o dedão, outros que cospem de lado, terceiros que atiram copinhos de água sem olhar para onde e por aí vai.
Há os desesperados que, mesmo lá na rabeira do pelotão, de repente desembestam a correr, cortar a frente dos outros, dar uma empurradinha, como se estivessem a disputar o pódio olímpico. E há os desencanados demais, que encontram amigos e saem a bater papo passo a passo, formando um paredão intransponível no já reduzido espaço em geral reservado aos corredores.
Com certeza você, que jamais cometeu nenhuma dessas grosserias, já enfrentou casos semelhantes nas trilhas ou no asfalto. Não reaja no mesmo tom desafinado. Muna-se de paciência, arme-se de paz e creia que, como diz o poeta, "gentileza gera gentileza". Tomara, pois as corridas -e a vida mesmo- estão precisando.

RODOLFO LUCENA, 54, é editor do blog +Corrida (maiscorrida.folha.com.br), ultramaratonista e autor de "Maratonando, Desafios e Descobertas nos Cinco Continentes" (Record)


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