São Paulo, quinta-feira, 07 de fevereiro de 2008
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[+] Corrida

Os lerdos também amam

Rodolfo de Lucena

A cabei há pouco de ler "Slow Man". Não foi uma leitura prazerosa; ao contrário, senti-a pedregulhosa, dolorida, resmunguenta e lenta como o homem do título.
Fui seduzido pelos comentários na contracapa, pela fama do autor -o sulafricano J. M. Coetzee, ganhador do Nobel de literatura em 2003- e, principalmente, pela curiosidade de ver um homem lento estrelando um romance. Sabia, é claro, que não tinha nada a ver com corridas, mas é bem possível que, lá nos recônditos do cérebro, esperasse que tivesse em algum momento.
Que nada.
A figura central da história (ia chamar de herói, mas melhor não) é Paul Rayment, um ativo sessentão a quem a inatividade é imposta depois de um acidente. O leitor acompanha a traje-tória de retorno à vida desse sujeito ranheta, ensimesmado, tornado ainda mais ma-cambúzio pelo desastre que lhe tirou quase toda uma perna.
Em vários momentos, lembrei-me de outra figurinha cinzenta, o auxiliar de guarda-livros Bernardo Soares, cujas memórias e observações da vida são o recheio do "Livro do Desassossego", de Fernando Pessoa.
Um e outro flutuam pela vida, a que têm como desimportante, assim como eles mesmos. Convictos também de sua própria insignificância, querem ser simplesmente mais um, deixados em paz, com permissão para pensar, olhar e ficar quietos. Também têm suas paixões, que examinam, analisam, quase vivem, fazem delas tema de filosofia.
Se acompanhar Rayment e Soares não serve como emulação para treinos heróicos e performances inesquecíveis, vale de exemplo para reflexões, pois eles são, de certa forma, espelho do que muitos vivemos no asfalto.
Qualquer que seja o desempenho, o corredor quer mais e faz da rua travessia para amores, conquistas, vitórias, tal e qual as fantasias de Soares ("Quantos Césares fui, aqui mesmo, na rua dos Douradores").
Não há dia em que o corredor não ache que fracassou: foi lento, fez menos, escalou rampas pouco escarpadas, desceu trilhas que não serviam de desafio. Também não há vez que não se levante desse sorvedouro abissal disposto a tentar de novo e, enfim, conquistar sabe-se lá o quê.
O corredor sempre se olha, examina, pois está lá, exposto: só faz o que pode, e o que não consegue fica escancarado. Conforma-se, mas se revolta, e treina e treina para conquistar o sonho. Faz, de seu jeito, uma filosofia corrida.


RODOLFO LUCENA, 50, editor de Informática da Folha, ultramaratonista e autor de "Maratonando, Desafios e Descobertas nos Cinco Continentes" (ed. Record)
rodolfolucena.folha@uol.com.br
www.folha.com.br/rodolfolucena


Em português
"Homem Lento" saiu no Brasil no ano passado, pela Companhia das Letras. A sinopse nos ensina que se trata de "uma profunda meditação sobre o que nos torna humanos e sobre o que significa envelhecer".

Em inglês
Este, sim, é um bom trabalho de emulação: "The Extra Mile" conta a trajetória de Pam Reed, primeira mulher a vencer a ultramaratona de Badwater, 217 quilômetros no deserto. Leia no blog trechos de entrevista com a atleta.

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