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[+] Corrida
Os lerdos também amam
Rodolfo de Lucena
A cabei há pouco de
ler "Slow Man".
Não foi uma leitura
prazerosa; ao
contrário, senti-a pedregulhosa,
dolorida, resmunguenta
e lenta como o homem
do título.
Fui seduzido pelos comentários
na contracapa,
pela fama do autor -o sulafricano
J. M. Coetzee, ganhador
do Nobel de literatura
em 2003- e, principalmente,
pela curiosidade de
ver um homem lento estrelando
um romance. Sabia, é
claro, que não tinha nada a
ver com corridas, mas é bem
possível que, lá nos recônditos
do cérebro, esperasse que
tivesse em algum momento.
Que nada.
A figura central da história
(ia chamar de herói,
mas melhor não) é Paul
Rayment, um ativo sessentão
a quem a inatividade é
imposta depois de um acidente.
O leitor acompanha
a traje-tória de retorno à vida
desse sujeito ranheta, ensimesmado,
tornado ainda
mais ma-cambúzio pelo desastre
que lhe tirou quase
toda uma perna.
Em vários momentos,
lembrei-me de outra figurinha
cinzenta, o auxiliar de
guarda-livros Bernardo Soares,
cujas memórias e observações
da vida são o recheio
do "Livro do Desassossego",
de Fernando Pessoa.
Um e outro flutuam pela
vida, a que têm como desimportante,
assim como eles
mesmos. Convictos também
de sua própria insignificância,
querem ser simplesmente
mais um, deixados
em paz, com permissão para
pensar, olhar e ficar quietos.
Também têm suas paixões,
que examinam, analisam,
quase vivem, fazem delas
tema de filosofia.
Se acompanhar Rayment
e Soares não serve como
emulação para treinos heróicos
e performances inesquecíveis,
vale de exemplo para
reflexões, pois eles são, de
certa forma, espelho do que
muitos vivemos no asfalto.
Qualquer que seja o desempenho,
o corredor quer
mais e faz da rua travessia
para amores, conquistas,
vitórias, tal e qual as fantasias
de Soares ("Quantos
Césares fui, aqui mesmo, na
rua dos Douradores").
Não há dia em que o corredor
não ache que fracassou:
foi lento, fez menos,
escalou rampas pouco escarpadas,
desceu trilhas que
não serviam de desafio.
Também não há vez que não
se levante desse sorvedouro
abissal disposto a tentar de
novo e, enfim, conquistar
sabe-se lá o quê.
O corredor sempre se olha,
examina, pois está lá, exposto:
só faz o que pode, e o que não
consegue fica escancarado.
Conforma-se, mas se revolta,
e treina e treina para conquistar
o sonho. Faz, de seu jeito,
uma filosofia corrida.
RODOLFO LUCENA, 50, editor de Informática da Folha,
ultramaratonista e autor de "Maratonando, Desafios e Descobertas
nos Cinco Continentes" (ed. Record)
rodolfolucena.folha@uol.com.br
www.folha.com.br/rodolfolucena
Em português
"Homem Lento" saiu no Brasil no ano passado, pela Companhia
das Letras. A sinopse nos ensina que se trata de "uma
profunda meditação sobre o que nos torna humanos e sobre
o que significa envelhecer".
Em inglês
Este, sim, é um bom trabalho de emulação: "The Extra Mile"
conta a trajetória de Pam Reed, primeira mulher a vencer a
ultramaratona de Badwater, 217 quilômetros no deserto.
Leia no blog trechos de entrevista com a atleta.
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