São Paulo, quinta-feira, 07 de junho de 2007
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Rosely Sayão

A menina que batia o pé

Quando Ana nasceu, foi uma alegria que só vendo. Seus pais planejavam sua chegada há anos. Casaram-se e viviam em lua-de-mel, fortalecendo a relação e a carreira profissional, construindo uma base financeira sólida e divertindo-se -adoravam sair e viajar.
O sonho de ter um filho ficava cada dia mais próximo e parecia ser a realização da união. Por isso, Aninha sempre teve de tudo, desde o primeiro dia fora da barriga da mãe. Aos dois anos, ela aprendeu uma coisa muito importante: para conseguir o que queria, tinha de fazer uma coisa simples e até gostosa -bater o pé.
Se Aninha queria comer biscoito na hora do almoço e os pais queriam que ela comesse comida, ela não titubeava: batia logo o pé e, como mágica, ganhava a gostosura. Se tinha vontade de dormir bem no meinho dos pais na cama deles, bastava bater o pé e dormia gostoso naquele lugar que achava tão aconchegante. E assim agia quando não queria ir para a escola, quando queria colocar o vestido que adorava e quando não queria beijar a vovó, por exemplo.
"Essa menina tem mesmo personalidade", dizia o pai, todo orgulhoso, quando Aninha batia o pé, fosse pelo que fosse.
"Ela é precoce, sabe muito bem o que quer desde pequena", comentava a mãe enquanto pensava, com prazer, que Aninha tinha a quem puxar. Aninha cresceu batendo o pé e, quando tinha perto de nove anos, foi chamada pela mãe para uma conversa séria. Em tom grave, ela anunciou: "Seu pai e eu nos separamos e, de agora em diante, somos só nós duas aqui em casa. Por isso, você tem de colaborar e bater menos o pé".
Aninha achou normal: muitos colegas já viviam essa situação e não foi novidade nem problema passar a ser filha de pais separados. Mas o que veio a seguir transtornou sua vida.
O pai quase não a procurava, para começar. "Se o bom de ser filha de pais separados é ter duas casas e passar o fim de semana fazendo programas legais só com o pai, que graça tinha viver assim?", pensava Aninha. Mais: Aninha passou a ouvir a mãe reclamar do pai. Se pedia uma mochila nova, tinha como resposta que o pai pagava uma pensão que não dava para nada.
Quando se arrumava para esperar o pai, a mãe avisava que não ficasse muito ansiosa porque o pai podia se esquecer do passeio porque era um irresponsável e egoísta etc.
Quando tinha sorte e se encontrava com o pai, acontecia o mesmo: ouvia-o dizer que a mãe era uma chata que se achava dona da verdade e que era por causa dela que ele não via a filha mais vezes.
O fato é que, sem perceber, Aninha deixou de bater o pé e passou a bater a cabeça. Não na parede -que ela não gostava de se machucar. Não conseguia prestar atenção nas aulas, brigava com a melhor amiga, só tinha vontade de fazer coisas que aborreciam a mãe e chorava escondido, às vezes por saudades do tempo em que tinha pai e mãe, às vezes por sentir ódio dos dois. Aninha ficou, agora sem querer, bem no meinho dos pais, lugar que descobriu ser nada aconchegante.
Mas ela tinha a sorte de ter uma tia legal, que lhe disse uma coisa que Aninha achou a mais importante que já ouviu: "Sempre que sua mãe ou seu pai começarem a falar mal um do outro, você diz que você não tem nada a ver com essa conversa e bate o pé até eles pararem".
Deu certo. Afinal, os pais sempre a atenderam quando ela batia o pé. E foi assim que Aninha deixou de bater a cabeça: voltando a bater o pé. Agora não mais por capricho, mas para conseguir aquilo de que mais precisava: deixar de ser a mira das armas usadas por seus pais para atirarem um no outro. E, claro: a presença não belicosa dos dois em sua vida.


ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha) roselysayao@folhasp.com.br
blogdaroselysayao.blog.uol.com.br


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