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Rosely Sayão
A menina que batia o pé
Quando Ana nasceu,
foi uma alegria que
só vendo. Seus pais
planejavam sua chegada há anos. Casaram-se e viviam em lua-de-mel, fortalecendo a relação e a carreira profissional, construindo uma base financeira sólida e divertindo-se -adoravam sair e viajar.
O sonho de ter um filho ficava
cada dia mais próximo e parecia ser a realização da união.
Por isso, Aninha sempre teve
de tudo, desde o primeiro dia
fora da barriga da mãe. Aos dois
anos, ela aprendeu uma coisa
muito importante: para conseguir o que queria, tinha de fazer
uma coisa simples e até gostosa
-bater o pé.
Se Aninha queria comer biscoito na hora do almoço e os
pais queriam que ela comesse
comida, ela não titubeava: batia
logo o pé e, como mágica, ganhava a gostosura. Se tinha
vontade de dormir bem no meinho dos pais na cama deles,
bastava bater o pé e dormia
gostoso naquele lugar que
achava tão aconchegante. E assim agia quando não queria ir
para a escola, quando queria
colocar o vestido que adorava e
quando não queria beijar a vovó, por exemplo.
"Essa menina tem mesmo
personalidade", dizia o pai, todo orgulhoso, quando Aninha
batia o pé, fosse pelo que fosse.
"Ela é precoce, sabe muito
bem o que quer desde pequena", comentava a mãe enquanto pensava, com prazer, que
Aninha tinha a quem puxar.
Aninha cresceu batendo o pé
e, quando tinha perto de nove
anos, foi chamada pela mãe para uma conversa séria. Em tom
grave, ela anunciou: "Seu pai e
eu nos separamos e, de agora
em diante, somos só nós duas
aqui em casa. Por isso, você tem
de colaborar e bater menos o
pé".
Aninha achou normal: muitos colegas já viviam essa situação e não foi novidade nem problema passar a ser filha de pais
separados. Mas o que veio a seguir transtornou sua vida.
O pai quase não a procurava,
para começar. "Se o bom de ser
filha de pais separados é ter
duas casas e passar o fim de semana fazendo programas legais
só com o pai, que graça tinha viver assim?", pensava Aninha.
Mais: Aninha passou a ouvir
a mãe reclamar do pai. Se pedia
uma mochila nova, tinha como
resposta que o pai pagava uma
pensão que não dava para nada.
Quando se arrumava para esperar o pai, a mãe avisava que
não ficasse muito ansiosa porque o pai podia se esquecer do
passeio porque era um irresponsável e egoísta etc.
Quando tinha sorte e se encontrava com o pai, acontecia o
mesmo: ouvia-o dizer que a
mãe era uma chata que se achava dona da verdade e que era
por causa dela que ele não via a
filha mais vezes.
O fato é que, sem perceber,
Aninha deixou de bater o pé e
passou a bater a cabeça. Não na
parede -que ela não gostava de
se machucar. Não conseguia
prestar atenção nas aulas, brigava com a melhor amiga, só tinha vontade de fazer coisas que
aborreciam a mãe e chorava escondido, às vezes por saudades
do tempo em que tinha pai e
mãe, às vezes por sentir ódio
dos dois. Aninha ficou, agora
sem querer, bem no meinho
dos pais, lugar que descobriu
ser nada aconchegante.
Mas ela tinha a sorte de ter
uma tia legal, que lhe disse uma
coisa que Aninha achou a mais
importante que já ouviu: "Sempre que sua mãe ou seu pai começarem a falar mal um do outro, você diz que você não tem
nada a ver com essa conversa e
bate o pé até eles pararem".
Deu certo. Afinal, os pais
sempre a atenderam quando
ela batia o pé. E foi assim que
Aninha deixou de bater a cabeça: voltando a bater o pé. Agora
não mais por capricho, mas para conseguir aquilo de que mais
precisava: deixar de ser a mira
das armas usadas por seus pais
para atirarem um no outro. E,
claro: a presença não belicosa
dos dois em sua vida.
ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como
Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha)
roselysayao@folhasp.com.br
blogdaroselysayao.blog.uol.com.br
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