São Paulo, quinta-feira, 07 de agosto de 2008
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OUTRAS IDÉIAS

DULCE CRITELLI


Biografias


[...] ORDENAR OS ELEMENTOS QUE CONSTITUEM NOSSAS VIDAS É UM TRABALHO DIFÍCIL; A NARRATIVA DE NOSSA HISTÓRIA PRECISA DE MAIS DO QUE UMA ÚNICA VERSÃO

Acabo de ler "Adeus, China", a biografia do bailarino Li Cunxin, que passou da mais cruel pobreza ao estrelato no Ocidente. Essa biografia chegou às livrarias porque já tem um herói garantido. É interessante, mas gosto mesmo é de histórias de vidas comuns.
Todas as histórias de vida são fascinantes. As pessoas nascem sob condições muito definidas e respondem a elas de múltiplas maneiras. Moldam-se em personagens sempre inéditas.
Se achamos nossa vida vazia e desinteressante, certamente nunca viajamos através da memória, buscando o nosso próprio percurso, nem nos empenhamos em contar uma história a nosso respeito.
Não falo de apanhar aqui e ali episódios vividos e relatá-los. Falo de narrar nossa existência com o objetivo de procurar, nela, aquele fio, escondido e insuspeito, que liga nossas vivências e lhes fornece sentido.
A partir do nosso nascimento, nossa história se estende para a frente (até nossa morte) e para trás, antes mesmo de virmos ao mundo. Ela se apropria da história dos nossos antepassados, das heranças que nos deixaram (sonhos, valores, experiências, situação financeira e social...) e dos eventos da época em que nascemos.
A partir de então, vai se desdobrando, numa espécie de parceria com todos aqueles com quem convivemos, aqueles dos quais nos afastamos, com quem brigamos, os que esquecemos, os que admiramos...
Todos são cúmplices de nossos sucessos e fracassos, de nossos medos e idiossincrasias, de nossos valores e objetivos...
Mas ordenar todos os elementos que constituem nossas vidas, como fez Li Cunxin, é um trabalho lento e difícil. A narrativa de nossa história precisa de mais do que uma única versão.
Em geral, a primeira narrativa cumpre as funções de sustentar a idéia que queremos ter de nós mesmos e de defender a personagem que acreditamos que somos em todas as ocasiões (vencedor, mártir, herói, vítima, perdedor, incompreendido...)
Grosso modo, a primeira história é sempre a versão mais conveniente para nós, montada inconscientemente por nós mesmos para justificar nossos atos e nossas palavras. Ela é o relato do ator, que, de tão entrelaçado na trama de suas vivências, não pode olhar o panorama nem se ver de fato.
Li Cunxin se viu como um menino afetuoso e obstinado, para quem a sorte ou os rumos do destino vinham por meio dos outros. O que o peculiarizava era não desistir nunca e treinar, treinar, treinar até conseguir o melhor movimento. Todo o resto lhe era dado por acréscimo. Apesar dos esforços, ele sempre se surpreendia com o reconhecimento dos outros e com os convites que recebia para cursos e apresentações.
Será que depois do livro escrito ele não descobriu em sua biografia um outro sentido, outros papéis para si mesmo, outras circunstâncias e situações?
É muito difícil sermos atores e, também, expectadores de nós mesmos. Como atores, agimos e sofremos, mas, como expectadores, podemos nos ver, julgar e compreender as razões de nossos gestos e palavras.
Sermos expectadores e narradores de nós mesmos é o caminho único para conseguirmos dar um passo além em nossa existência: tornarmo-nos autores de nossa história.
Como autores, o que conquistamos é a chance de não mais nos deixarmos arrastar pelas contingências da vida. Assim, nossa vida começa a ser, propriamente, uma história.


DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br

Leia na próxima semana a coluna de Wilson Jacob Filho



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