São Paulo, quinta-feira, 08 de janeiro de 2009
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OUTRAS IDEIAS

Dulce Critelli

Pequeno conto de Ano-Novo


[...] DEPOIS DE MUITO DEBATE, DECIDEM QUE AS ÚNICAS COISAS QUE DEVEM CRESCER SÃO O VALOR E A QUALIDADE DA VIDA HUMANA

Milagres acontecem, mas eles são os dons, poderes dos homens, como diz Hannah Arendt, pois são aqueles gestos que realizamos e, que, por meio deles, iniciamos uma nova cadeia de eventos -não só imprevisíveis mas, sobretudo, improváveis. Há o desejo de um milagre que renasce comigo em todo ano que se inicia. Ele não é apenas imprevisível e improvável, é uma ficção.
Durante a madrugada em que o ano novo se gesta, algo contagia o ar. Como consequência, inexplicavelmente, todas as pessoas se esquecem de uma de suas crenças básicas, que, por décadas, vem controlando suas mentes. No primeiro dia do ano, ninguém mais acredita que o bom negócio e o bom trabalho são definidos pela riqueza que geram.
Nem mesmo economistas, políticos e empresários conseguem entender que a riqueza produzida pelo trabalho e pelos negócios tenha por objetivo apenas produzir mais riqueza.
Portanto, quando os negociantes e industriais retomam suas atividades e analisam seus balanços e projetos para o ano, se espantam com o fato de neles constar algo absolutamente sem significado: "Projeção de crescimento para 2009".
Os empresários, então, convocam economistas e políticos em busca de uma luz. Mas ninguém compreende o que aquilo significa. Pensam, então, em suprimir a expressão de seus planejamentos, mas alguns acham muito bonita a palavra crescimento para ser deletada.
Associada a um novo ano, ela roça nos corações como uma melodia de esperança.
Então, em vez de se livrarem da expressão, resolvem organizar um congresso mundial para dar sentido a ela. É assim que todos os homens e mulheres de poder do mundo se reúnem e começam a buscar resposta para a única pergunta que inquieta a todos: o que poderá crescer em 2009?
Estudam mapas, dados demográficos, relatórios econômicos, gráficos e censos de toda natureza e fazem um levantamento das condições ambientais, de saúde e de educação... Ficam estarrecidos com o resultado. Depois de muito debate, decidem que as únicas coisas que devem crescer são o valor e a qualidade da vida humana.
Dissolveu-se de tal modo no ar qualquer importância que a riqueza em si mesma tivesse contido que, quando alguém arrisca dizer que o que deve crescer é o lucro das empresas, é vaiado e quase expulso do evento. "Absurdo!", dizem.
Tomada a decisão e, para pôr em obras o decidido, também definem uma cúpula mundial responsável pelo novo crescimento. Escolhem, então, renomados professores, filósofos, profissionais da saúde e ambientalistas para dirigi-la. Assinam, finalmente, um acordo para tornar os esquemas de governo e a economia instrumentos de apoio dessa nova ordem.
De quebra, resolvem reorganizar os paradigmas da educação, da ciência e das instituições religiosas. E, a partir de então, o mundo passa a compreender o que sempre quis dizer: feliz Ano-Novo!


DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


Leia na próxima semana a coluna de Wilson Jacob Filho


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