São Paulo, terça-feira, 08 de fevereiro de 2011
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Preguiça de papo-gourmet

IARA BIDERMAN
DE SÃO PAULO

Para você que come caviar e sonha com miojo. Ou que sonha com caviar, mas não aguenta mais ouvir coisas como uma-incrível-técnica-que-um-bistrô-em-Paris usa para servir as ovas. Para você que tem preguiça de discutir a metafísica da abobrinha.
Esta história é para você.
Comida boa, todo mundo gosta. Mas o problema é que, para o gourmet, não basta comer: tem que contar.
"O gourmet nunca esquece o nome do morto. E enquanto o come, faz menção expressa a ele, seja javali ou alcachofra, e lembra de outros assassinatos e devorações anteriores, porque o prazer de comer deve vir acompanhado da memória de festins passados."
A descrição acima foi feita em 1990 pelo escritor espanhol Manuel Vásquez Montalbán (1930-2003), autor de "Contra los Gourmets" (sem tradução para o português).
Ótimo se prazer e palavrório se complementam, o último prolongando o primeiro. Mas, de lá para cá, muitas trufas brancas rolaram, e o pessoal se esqueceu de que o verbo não substitui a carne (ou o peixe ou o frango).
"Com a modernização da culinária e a hipervalorização da alta gastronomia, as pessoas estão ficando cada vez mais "sofisticadas", mas cada vez mais chatas. Elas discutem o prato em vez de comer", diz André Barcinski, crítico da Folha e assumido "bom garfo".

SEM FRESCURA
Barcinski é crítico de cinema, não de gastronomia. Mas quando postou em seu blog (http://andrebarcinski.folha.blog.uol.com.br) o "Guia da culinária ogra", surpreendeu-se com a quantidade de leitores solidários e famintos, como ele, por comida sem frescura.
A reação do público cansado do papo-gourmet, seja ao vivo ou pela TV, também é sentida pelo ator Paulo Tiefenthaler, que encarna o apresentador Paulo de Oliveira, do seriado "Larica Total" (Canal Brasil).
A série, que parte para a terceira temporada, é uma sátira aos programas de culinária tradicionais e aos chavões da gourmelândia.
Na proposta do programa "nada de faisões, trufas ou fungos australianos (...) nem outras raridades psico-sofisti-palhaçadas de carinho." A culinária de guerrilha é feita de "clássicos" como yaksobra, sushi de feijoada e bolinho de miojo.
Após a estreia do programa, no final de 2008, Tiefenthaler conta que começou a ser parado na rua por todo o tipo de gente querendo dar a sua receita trash. "Acho que as pessoas começaram a sair do armário. Me dizem que se sentem aliviadas vendo o programa, perdem a vergonha de não serem "chiques"."
Mas a tropa de resistência aos modismos gastronômicos ainda terá de comer muito feijão e arroz até se impor.
"Estou escrevendo um cardápio para cliente e tenho que pôr "tartelete de alho-poró mimoso". Não posso sugerir: "massinha com creme de milho". Vê que humilhação tenho que passar?", diz Nina Horta, colunista da Folha e dona do bufê Ginger.
Segundo ela, apesar de uns poucos grandes cozinheiros ("no máximo 0,5%") fazendo comida nova e gostosa, os experimentos e supostas sofisticações já deram o que tinham que dar, para a maioria das pessoas.

JAVALI COM BLUEBERRY
"Essa comida não é minha nem de ninguém. Você já entrou na casa de sua vizinha e viu ela comendo javali com molho de blueberry e agrião doce?", pergunta Nina.
Ela arrisca uma teoria: "Parece que o sexo ficou uma coisa complicada, então, em vez de conversar sobre homem ou mulher, ficam falando de comida."
Nina não tem certeza se as pessoas preferem risoto com funghi chileno colhido na primavera a transar, mas está quase certa que muitos gostam é de se exibir.
Ela conta que, depois de entrar no Facebook, quase começou uma briga. O motivo foi um comentário na rede: "Alguém escreveu [no Facebook]: "Que vontade de comer um peito de pato tomando um Chablis na beira do Sena". Ai, que preguiça...".
Silvia Guimarães Couto, do restaurante Da Silvinha, se incomoda com esse papo. "Comida foi feita para você se alimentar e curtir. Mas fica todo mundo querendo ser francês e complicar. Já me perguntaram "quem assina" minha comida. E olha que eu sirvo arroz, feijão e farofa."


FOOD VICTMS
Nina Horta diz estar cansada do que ela chama de "food victims", vítimas das modas gastronômicas.
"Desconfio sempre das modas. A nouvelle cuisine, cheia de frescuras, surgiu na época dos yuppies, que tinham muito dinheiro para gastar. Agora, se as coisas que as pessoas podem comer têm que ser mais baratas, vão começar a glamorizar outros tipos de comida. É um jeito de serem felizes com aquilo que têm."
Desse ponto de vista, a reação ao papo-gourmet não surge apenas porque as pessoas cansaram, mas também porque precisam gastar menos para sustentar o prazer.
A chef Heloisa Bacellar, do restaurante "Lá da Venda", acredita que não é só isso. "Há pessoas cansadas de afetação e arrogância, de gente dizendo que você tem que gostar de algo ou que você não pode gostar de, sei lá, estrogonofe, porque agora virou cafona."
Bacellar lembra que o movimento por "comida de verdade" está crescendo em vários países do mundo.
O problema é começarem a glamorizar demais a dobradinha, e você ser chamado de esnobe e fora de moda só por não gostar de tripas.

COMIDA-COMIDA
Restaurante da Silvinha
r.Costa Carvalho, 138, Pinheiros, São Paulo;
tel. 0/xx/11/2501-3219

Lá da Venda
r.Hamonia, 161, Vila MAdalena., São Paulo;
tel: 0/xx/11/3037-7702

Bufê Ginger
r.Costa Carvalho, 293, Pinheiros, São Paulo;
tel.0/xx/11/3816-2612



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