São Paulo, quinta-feira, 08 de junho de 2000
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outras idéias

Está faltando espanto!

Mario Sergio Cortella

Final do século 20! Profusão exuberante de tecnologia, patamares científicos inéditos, resultados econômicos estrondosos, produção magnífica de bens de consumo. Olhando só para as conquistas, tudo é superlativo!
Nos últimos 50 anos, tivemos mais desenvolvimento inventivo do que em toda a história anterior da humanidade; em outras palavras: aceitando a hipótese de que há aproximadamente 40 mil anos somos "homo sapiens sapiens", apenas nas 5 décadas mais recentes acumulamos mais estruturas de conhecimento e intervenção no mundo do que em todos os 39.950 anos anteriores.
A cada dia nos deparamos com novas invenções, novos produtos, novos modos de fazer e interpretar; em cada um desses dias, precisamos nos acostumar com as novidades, aprender a lidar com elas e, mais do que tudo, acabamos por nos submeter ao ritmo que elas impõem. De alguma maneira, essa overdose da novidade induz a uma certa insensibilização dos sentidos e dos sentimentos, de modo que se acaba por considerar todo esse redemoinho cotidiano como sendo corriqueiro e "normal".
Parece até que uma nova e tácita norma social despontou: fica proibido manifestar admiração exagerada ou rejeição camuflada à existência de produtos resultantes das robustas vitórias da racionalidade técnica e mercantil. Se, até há pouco, o pedantismo consumista se encarnava na posse de bens diferenciais ("Eu tenho isto e você não tem; então, sou melhor que você"), agora, mudou o foco. A superioridade daqueles que já têm de tudo expressa-se não mais na posse de um objeto, mas, antes, na simulação de que tal objeto é familiar e, mais ainda, de uso corriqueiro no dia-a-dia. Afinal, surpreender-se com a invenção de algo ("Você ainda não conhece?") seria indício de desatualização informativa; já a rejeição do uso ("Você ainda não utiliza?") sinalizaria arcaísmo mental e uma senil pré-modernidade.
Essa é uma imensa confusão entre o disponível e o supérfluo. Não é à toa que Eurípedes, o magistral tragediógrafo grego do século 5 a.C., vivendo num período de extensa abundância de recursos exclusivos para as elites (tal como hoje, entre nós), tenha perguntado: "O que é a abundância? Um nome, nada mais; ao sensato basta o necessário".
A sensatez de muitos está curvando-se ao tresloucado modismo "tecnólatra" que, como ponto de partida, incorpora procedimentos autoritários e imperativos (até fascistas), subordinando a liberdade de escolha a uma compulsão irrefletida. O pensador francês contemporâneo Roland Barthes, mais conhecido fora do mundo acadêmico por ter escrito "Fragmentos de um Discurso Amoroso" -e que, a propósito, produziu um ensaio demolidor de certezas chamado "O Sistema da Moda"-, alertou-nos para o fato de que "o fascismo não é impedir-nos de dizer, é obrigar-nos a dizer".
A questão não é, de forma alguma, abandonar a tecnologia e seus resultados positivos; isso seria uma estupidez. O que não se pode perder, porém, é a capacidade de ficar espantado; essa perda nos leva a achar tudo muito óbvio e rotineiro, impedindo a admiração, que conduz à reflexão criadora. É o famoso (e fundamental) "parar para pensar" e, claro, admirar.
É necessário não menosprezar a atitude inovadora daqueles que, como as crianças, ainda se admiram de que as coisas sejam como são, em vez de fingir que espantoso seria se não fossem assim...


MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo, professor da PUC-SP e autor de "A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos e Políticos" (ed. Cortêz/IPF), entre outros, assina esta coluna toda primeira semana do mês



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