São Paulo, terça-feira, 08 de junho de 2010
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OUTRAS IDEIAS

ANNA VERONICA MAUTNER - amautner@uol.com.br

Reféns das máquinas


Transferimos o fazer para o controlar e o assistir. Ficamos mais passivos, mas não menos ocupados

A RESPEITO DO TEMPO, as duas queixas que mais escuto são: que ele corre demais -o ano mal começa e já está acabando- e que falta tempo livre para si. Nunca descobri qual a diferença entre tempo para si e tempo outro.
Vivemos o tempo do micro-ondas, do forninho, do liquidificador, da batedeira, que nos "desensinam" a arte de conhecer os ingredientes e a química das receitas.
Na batedeira, qualquer clara vira suspiro. O micro-ondas derrete tudo de acordo com uma teoria que desconheço. É só apertar o botão e o calor se faz sem fogo. Tudo para economizar o tempo geral e sobrar tempo para si.
Para o almoço, tiro do freezer, ponho no micro-ondas, bato no liquidificador, ponho na sopeira. Depois, a máquina lava a louça. Enquanto isso, o que eu faço? Fico ligado nas máquinas que trabalham para mim, não sou livre. Esse tempo não é livre.
É verdade que eu não faço força, mas liberdade enquanto as máquinas trabalham para a gente é uma quimera, uma ilusão. Mas a gente gosta de se deixar enganar.
O tempo que deveria sobrar outros eletroeletrônicos açambarcam. A secretária eletrônica, os e-mails, o programa de TV ocupam o tempo do mesmo jeito que esquentar sem micro-ondas. Transferimos o fazer no tempo para o controlar e assistir.
Ficamos mais passivos, mas não menos ocupados.
A economia quer que eu use muitos aparelhos, para que o mercado fique aquecido e em movimento. Mergulhada na ilusão de que enquanto eu observo sou mais livre do que quando eu fazia, vou me submetendo a outras forças, que roubam e comprimem o meu tempo.
E os anos vão andando mais depressa. Não sei quanto a você, mas a minha vida está sendo editada, prensada por essas forças externas.
Proponho inverter o jogo: roubar o tempo poupado pelas máquinas para voltar ao ritmo da vida real. Sempre que possível, quero ver o sol se pondo. Não quero ser submetida ao pôr do sol editado. Quero esperar a maré subir.
Quero ver a emulsão do ovo com o óleo virar maionese ao ritmo da minha mão, que deve mexer sempre para o mesmo lado. Enquanto a maionese vai crescendo e a mão vai cansando, eu me harmonizo com a vida.
Vamos roubar tempo para voltar a viver, um pouco que seja, a hora de 60 minutos, fazendo. O tempo criado pelo movimento de rotação e translação do planeta, o real, pede passagem.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)


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