São Paulo, quinta-feira, 08 de julho de 2004
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outras idéias

anna veronica mautner

Socorro! A eletrônica me persegue

Restam os terríveis gerúndios ("Vou estar fazendo seu lençol", "Vou estar visitando sua firma"), que ferem nossos ouvidos idosos, ainda acostumados ao português pré-eletrônico. Sobre isso, que falem os gramáticos
Hoje não quero ser saudosista nem quero destruir todas as máquinas eletrônicas. Queria, isto sim, que elas funcionassem bem quase sempre. Só isso, nada mais.Vamos ver a desdita que temos na lida com os telefones modernos e seus inúmeros acessórios.
Suponhamos que eu precise falar com uma pessoa, mas ela não queira falar comigo. Como esse meu interlocutor não tem desculpa elaborada, pretende procrastinar -vulgo empurrar com a barriga- para ver se eu desisto da conversa, mas disso eu ainda não fui informada.
Se isso ocorrer por meio de um celular, basta ele bater o olho, ver meu número e desligar. Azar o meu. Aí, eu fico na dúvida: terá caído a linha? Será que entrou num túnel? Será defeito do aparelho dele ou do meu? Em meio a essas dúvidas, tento de novo. Agora, depois do primeiro toque, já vai dando sinal de ocupado e fico sem saber se ele está me evitando ou se a ligação está ruim. Eis a multiplicação dos recursos que complicam a vida e desvirtuam o modo de usar, exigindo novas normas de boas maneiras.
Como eu também sou esperta, vou driblá-lo mudando de telefone. Se ele atender, não era defeito. Mas daí, de novo, a necessidade da "nova etiqueta": não é de bom-tom dizer que percebi o jogo. É preciso pedir aos autores de livros de boas maneiras que anexem referências sobre "bom-tom na hipocrisia eletrônica". Nada mais freqüente do que não encontrarmos nada na secretária eletrônica, mas o infalível Bina ou Detecta acusar a ligação. Poderíamos desenvolver um artigo inteiro só sobre as normas modernas do uso do telefone, mas passemos adiante.
Quando nos perguntam "deseja?" ou "quem deseja?", jamais devemos corrigir o infeliz atendente, até porque de nada vai adiantar. E ficaremos com cara de ignorantes e atrasados por ainda não termos percebido que o verbo desejar passou a ser intransitivo, em data que não me foi anunciada. Que sejam avisados ao menos os gramáticos!
Vivemos uma época de mudanças. As formas de sociabilidade renovam-se quase diariamente -não só no modo dos verbos mas também na multiplicação dos comportamentos de esquiva, no teor das desculpas e na aceitação dos obrigatórios subentendidos.
Faz menos de dez anos que existe o Detecta, e não há mais anonimato ao discar um número de telefone. O trote vai morrendo ou se modificando. Verbos transitivos viram intransitivos -não pela força de escritores aperfeiçoando o uso da língua, e sim pela boca do grande comunicador universal: o telemarketing.
Restam os terríveis gerúndios ("Vou estar fazendo seu lençol", "Vou estar visitando sua firma" etc.), que ferem nossos ouvidos idosos, ainda acostumados ao português pré-eletrônico. Sobre isso, que falem os gramáticos, mas estes são acadêmicos, lentos, não conseguem acompanhar o correr dos tempos.
Hoje o trânsito é uma desculpa muito mais eficiente para ausência ou atraso do que a famigerada doença em família. Cada dia mais, os prefeitos nos fornecem, pelo mau trânsito, elementos para manter a nova desculpa. Quando alguém diz que chegou tarde porque a mãe ficou doente, até se estranha. Ah! E existe também, para quem mora em São Paulo, o sacrossanto rodízio, grande desculpa: "Não posso ir, estou no rodízio".
Nas compras, não basta pedir com clareza o que queremos nem basta o balconista ser eficiente. Na hora de pagar, a máquina (o computador), que deveria aumentar a eficiência e a rapidez, ao contrário, retarda. Isso quando o "sistema" não cai e ficamos paralisados. Nem vamos falar sobre os cartões de crédito, que, até pouco tempo atrás, eram colocados numa maquininha com papel carbono, e bastava o vendedor ter mão para que ela funcionasse. Agora, é preciso esperar que o telefone tenha linha, e ele, é claro, não funciona nas horas de pico, que é exatamente quando eu também estou fazendo compras assim como todos os outros, por isso "pico". Olho, peço, escolho, compro em cinco minutos e espero outros dez para poder pagar e sair. Eu, que não estou na folha de pagamento da loja, fico uma espécie de sócia na perda de tempo, sem direito à participação nos lucros.
Demora porque, com o computador, o comerciante aproveita para dar baixa no estoque, enquanto eu espero. Eu perco, e o dono da loja ganha. O cartão que demora a passar também faz parte do mesmo esquema. O débito cai na minha conta ao mesmo tempo em que é verificado se eu tenho fundos para pagar. Eles já se garantiram, a baixa no estoque foi dada, e tudo à custa do meu tempo, que, cá entre nós, também deveria ter preço.
Não sou ingênua, sei que foram necessários anos para que os aparelhos de rádio começassem a falar logo que eram ligados. Foi preciso passar da válvula para o chip. Hoje, somos submetidos a máquinas que ainda estão no tempo da válvula, das quais nós, usuários, somos cobaias. Isso come nosso tempo e nossa paciência!
Sinto-me injustiçada. Desconfio até que a tragédia das longas filas nos bancos e nas instituições governamentais tenha algo a ver com o uso dessas máquinas mal desenvolvidas e operadas por pessoas mal treinadas.
E assim passam os dias, nós, com o telefone no ouvido, escutando música que não escolhemos e vozes metálicas a nos darem ordens em gerúndios e imperativos.
Proponho melhor treinamento para os operadores e rápido aperfeiçoamento das máquinas. Que tudo seja de última e ótima geração.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui uma vez por mês; e-mail: amautner@uol.com.br


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