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outras idéias
anna veronica mautner
Socorro! A eletrônica me persegue
Restam os terríveis gerúndios ("Vou estar fazendo seu lençol", "Vou estar visitando sua firma"), que ferem
nossos ouvidos idosos, ainda acostumados ao português
pré-eletrônico. Sobre isso, que falem os gramáticos
Hoje não quero ser saudosista nem quero destruir
todas as máquinas eletrônicas. Queria, isto sim,
que elas funcionassem bem quase sempre. Só isso,
nada mais.Vamos ver a desdita que temos na lida com os
telefones modernos e seus inúmeros acessórios.
Suponhamos que eu precise falar com uma pessoa, mas
ela não queira falar comigo. Como esse meu interlocutor
não tem desculpa elaborada, pretende procrastinar -vulgo empurrar com a barriga- para ver se eu desisto da
conversa, mas disso eu ainda não fui informada.
Se isso ocorrer por meio de um celular, basta ele bater o
olho, ver meu número e desligar. Azar o meu. Aí, eu fico na
dúvida: terá caído a linha? Será que entrou num túnel? Será defeito do aparelho dele ou do meu? Em meio a essas
dúvidas, tento de novo. Agora, depois do primeiro toque,
já vai dando sinal de ocupado e fico sem saber se ele está
me evitando ou se a ligação está ruim. Eis a multiplicação
dos recursos que complicam a vida e desvirtuam o modo
de usar, exigindo novas normas de boas maneiras.
Como eu também sou esperta, vou driblá-lo mudando
de telefone. Se ele atender, não era defeito. Mas daí, de novo, a necessidade da "nova etiqueta": não é de bom-tom
dizer que percebi o jogo. É preciso pedir aos autores de livros de boas maneiras que anexem referências sobre
"bom-tom na hipocrisia eletrônica". Nada mais freqüente
do que não encontrarmos nada na secretária eletrônica,
mas o infalível Bina ou Detecta acusar a ligação. Poderíamos desenvolver um artigo inteiro só sobre as normas
modernas do uso do telefone, mas passemos adiante.
Quando nos perguntam "deseja?" ou "quem deseja?", jamais devemos corrigir o infeliz atendente, até porque de
nada vai adiantar. E ficaremos com cara de ignorantes e
atrasados por ainda não termos percebido que o verbo desejar passou a ser intransitivo, em data que não me foi
anunciada. Que sejam avisados ao menos os gramáticos!
Vivemos uma época de mudanças. As formas de sociabilidade renovam-se quase diariamente -não só no modo dos verbos mas também na multiplicação dos comportamentos de esquiva, no teor das desculpas e na aceitação
dos obrigatórios subentendidos.
Faz menos de dez anos que existe o Detecta, e não há
mais anonimato ao discar um número de telefone. O trote
vai morrendo ou se modificando. Verbos transitivos viram intransitivos -não pela força de escritores aperfeiçoando o uso da língua, e sim pela boca do grande comunicador universal: o telemarketing.
Restam os terríveis gerúndios ("Vou estar fazendo seu
lençol", "Vou estar visitando sua firma" etc.), que ferem
nossos ouvidos idosos, ainda acostumados ao português
pré-eletrônico. Sobre isso, que falem os gramáticos, mas
estes são acadêmicos, lentos, não conseguem acompanhar
o correr dos tempos.
Hoje o trânsito é uma desculpa muito mais eficiente para
ausência ou atraso do que a famigerada doença em família. Cada dia mais, os prefeitos nos fornecem, pelo mau
trânsito, elementos para manter a nova desculpa. Quando
alguém diz que chegou tarde porque a mãe ficou doente,
até se estranha. Ah! E existe também, para quem mora em
São Paulo, o sacrossanto rodízio, grande desculpa: "Não
posso ir, estou no rodízio".
Nas compras, não basta pedir com clareza o que queremos nem basta o balconista ser eficiente. Na hora de pagar,
a máquina (o computador), que deveria aumentar a eficiência e a rapidez, ao contrário, retarda. Isso quando o
"sistema" não cai e ficamos paralisados. Nem vamos falar
sobre os cartões de crédito, que, até pouco tempo atrás,
eram colocados numa maquininha com papel carbono, e
bastava o vendedor ter mão para que ela funcionasse. Agora, é preciso esperar que o telefone tenha linha, e ele, é claro, não funciona nas horas de pico, que é exatamente
quando eu também estou fazendo compras assim como
todos os outros, por isso "pico". Olho, peço, escolho, compro em cinco minutos e espero outros dez para poder pagar e sair. Eu, que não estou na folha de pagamento da loja,
fico uma espécie de sócia na perda de tempo, sem direito à
participação nos lucros.
Demora porque, com o computador, o comerciante
aproveita para dar baixa no estoque, enquanto eu espero.
Eu perco, e o dono da loja ganha. O cartão que demora a
passar também faz parte do mesmo esquema. O débito cai
na minha conta ao mesmo tempo em que é verificado se
eu tenho fundos para pagar. Eles já se garantiram, a baixa
no estoque foi dada, e tudo à custa do meu tempo, que, cá
entre nós, também deveria ter preço.
Não sou ingênua, sei que foram necessários anos para
que os aparelhos de rádio começassem a falar logo que
eram ligados. Foi preciso passar da válvula para o chip.
Hoje, somos submetidos a máquinas que ainda estão no
tempo da válvula, das quais nós, usuários, somos cobaias.
Isso come nosso tempo e nossa paciência!
Sinto-me injustiçada. Desconfio até que a tragédia das
longas filas nos bancos e nas instituições governamentais
tenha algo a ver com o uso dessas máquinas mal desenvolvidas e operadas por pessoas mal treinadas.
E assim passam os dias, nós, com o telefone no ouvido,
escutando música que não escolhemos e vozes metálicas a
nos darem ordens em gerúndios e imperativos.
Proponho melhor treinamento para os operadores e rápido aperfeiçoamento das máquinas. Que tudo seja de última e ótima geração.
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui uma vez por mês; e-mail: amautner@uol.com.br
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