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Outras idéias - Michael Kepp
Ceder ou não ceder
Não tenho tempo para
indecisão quando
um desconhecido
me pede um favor.
Por quê? Ele espera uma resposta imediata. E não sei se, em
uma situação semelhante, ele
faria o mesmo por mim. Então,
em alguns segundos, preciso
responder a três perguntas para tomar a decisão. A pessoa
precisa muito desse favor?
Concedê-lo vai ser uma inconveniência muito grande para
mim? E a pessoa que pede está
sendo gentil?
Num vôo doméstico, troquei
de lugar com uma mulher que
queria se sentar com o marido.
Mas, num vôo para a Alemanha, me recusei a trocar minha
poltrona no corredor, ao lado
de outro marido, pela da mulher, no meio das poltronas
centrais. Por que não cedi? Passar 12 horas como recheio de
sanduíche, com duas pessoas
de cada lado, faria minha claustrofobia virar ataque de pânico.
É fonte de tanta ansiedade que
sento ao lado do corredor em
cinemas e evito ser espremido
em blocos de Carnaval, elevadores, ônibus e metrôs lotados.
Tenho mais tempo para decidir se devo ceder a desconhecidos cujos hábitos me irritam.
Por quê? Não esperam minha
aprovação. Em vez de ceder aos
que fumam perto de mim em
um ônibus ou na área de não-fumantes em restaurantes, digo que é proibido. Uma vez, disse isso a um velhinho com um
charuto aceso no elevador. Sua
resposta: "Ninguém me diz o
que posso fazer neste prédio. Sou dono dele".
Cedo a quase todos os que furam filas porque minha ficha
não é limpíssima. Se, depois de
comprar ingresso para o cinema, encontrar um conhecido
na longa fila, puxo conversa. E
uso o caixa expresso no supermercado quando meu carrinho
tem 15 itens, e não os dez ou
menos exigidos. Mas não cedo a
malandros(as) cujo modo de
furar fila acaba resultando em
uma longa espera.
É o caso da dondoca sessentona que entrou no consultório
onde eu esperava, reclamando
de fortes dores no peito e exigindo ver o médico imediatamente. A recepcionista perguntou se não nos importaríamos
de ceder a vez. Exceto por mim,
todos disseram "tudo bem",
que teria sido normalmente a
minha resposta. Mas achei que
a dondoca poderia estar fingindo ou exagerando o desconforto. Afinal, encontrou tempo,
em meio à dor que a fez correr
para o consultório, para pôr um
monte de maquiagem. Além
disso, ela era um rolo compressor, achatando qualquer um
que se impusesse entre ela e
seu objetivo.
Apesar de tentar tratar os
outros como gostaria de ser
tratado, trato rolos compressores como acho que me tratariam. E, já que não conseguia
imaginar a tal dondoca cedendo sua vez para mim -a não
ser que eu caísse inconsciente
no chão-, disse a ela: "Se sua
dor no peito é tão grande assim, talvez seja melhor ir para
o hospital, que fica a um quarteirão daqui".
Então, ela olhou para mim, o
primeiro da fila, e disse: "Pedi
sua vez, não sua opinião". Minha réplica: "O paciente atrás
de mim cedeu o lugar, pode entrar logo depois de mim". Em
vez de encarar a humilhação,
ela saiu da sala num rompante,
mas não para o hospital. Depois da minha consulta, ela estava sentada pacientemente, e
parece que a dor no peito sumira. Ou talvez tenha cedido.
MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano
radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de
crônicas "Sonhando com Sotaque -Confissões
e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br
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