São Paulo, quinta-feira, 08 de novembro de 2007
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Outras idéias - Michael Kepp

Ceder ou não ceder

Não tenho tempo para indecisão quando um desconhecido me pede um favor. Por quê? Ele espera uma resposta imediata. E não sei se, em uma situação semelhante, ele faria o mesmo por mim. Então, em alguns segundos, preciso responder a três perguntas para tomar a decisão. A pessoa precisa muito desse favor?
Concedê-lo vai ser uma inconveniência muito grande para mim? E a pessoa que pede está sendo gentil?
Num vôo doméstico, troquei de lugar com uma mulher que queria se sentar com o marido. Mas, num vôo para a Alemanha, me recusei a trocar minha poltrona no corredor, ao lado de outro marido, pela da mulher, no meio das poltronas centrais. Por que não cedi? Passar 12 horas como recheio de sanduíche, com duas pessoas de cada lado, faria minha claustrofobia virar ataque de pânico.
É fonte de tanta ansiedade que sento ao lado do corredor em cinemas e evito ser espremido em blocos de Carnaval, elevadores, ônibus e metrôs lotados. Tenho mais tempo para decidir se devo ceder a desconhecidos cujos hábitos me irritam. Por quê? Não esperam minha aprovação. Em vez de ceder aos que fumam perto de mim em um ônibus ou na área de não-fumantes em restaurantes, digo que é proibido. Uma vez, disse isso a um velhinho com um charuto aceso no elevador. Sua resposta: "Ninguém me diz o que posso fazer neste prédio. Sou dono dele".
Cedo a quase todos os que furam filas porque minha ficha não é limpíssima. Se, depois de comprar ingresso para o cinema, encontrar um conhecido na longa fila, puxo conversa. E uso o caixa expresso no supermercado quando meu carrinho tem 15 itens, e não os dez ou menos exigidos. Mas não cedo a malandros(as) cujo modo de furar fila acaba resultando em uma longa espera.
É o caso da dondoca sessentona que entrou no consultório onde eu esperava, reclamando de fortes dores no peito e exigindo ver o médico imediatamente. A recepcionista perguntou se não nos importaríamos de ceder a vez. Exceto por mim, todos disseram "tudo bem", que teria sido normalmente a minha resposta. Mas achei que a dondoca poderia estar fingindo ou exagerando o desconforto. Afinal, encontrou tempo, em meio à dor que a fez correr para o consultório, para pôr um monte de maquiagem. Além disso, ela era um rolo compressor, achatando qualquer um que se impusesse entre ela e seu objetivo.
Apesar de tentar tratar os outros como gostaria de ser tratado, trato rolos compressores como acho que me tratariam. E, já que não conseguia imaginar a tal dondoca cedendo sua vez para mim -a não ser que eu caísse inconsciente no chão-, disse a ela: "Se sua dor no peito é tão grande assim, talvez seja melhor ir para o hospital, que fica a um quarteirão daqui".
Então, ela olhou para mim, o primeiro da fila, e disse: "Pedi sua vez, não sua opinião". Minha réplica: "O paciente atrás de mim cedeu o lugar, pode entrar logo depois de mim". Em vez de encarar a humilhação, ela saiu da sala num rompante, mas não para o hospital. Depois da minha consulta, ela estava sentada pacientemente, e parece que a dor no peito sumira. Ou talvez tenha cedido.


MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque -Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)

www.michaelkepp.com.br


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