São Paulo, quinta-feira, 09 de janeiro de 2003
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outras idéias anna veronica mautner

Precisamos olhar o recém-conquistado espaço do universo tecnológico sem implicar com ele. Ele é o espaço seguro que resta para exercitarmos habilidades motoras, mentais e éticas

A calçada, o quintal, o campinho e o computador

Adultos se espantam com a naturalidade das crianças diante do mundo eletrônico. Enquanto gente grande precisa de longas explicações e consultas a manuais, as crianças parecem nascer sabendo tudo. Relacionam-se sem cerimônia com os terminais de cabos e satélites, como se estes tivessem sido, desde sempre, território próprio da humanidade. Os jovens não são impactados pela tecnologia de ponta como os que nasceram antes dela e que ainda nem bem entenderam os milagres da eletricidade.
É que eles não têm medo de errar. Vivem o momento de ensaiar. Botões eletrônicos, patins, bola, é tudo a mesma coisa: novos desafios. Engatinhar, andar, jogar bola ou lidar com o computador se aprende do mesmo jeito. Motora ou mental, a aprendizagem se dá sempre no campo da tentativa -erros corrigidos por "feedback". Se os antropólogos tiverem razão, isso é válido para todos os povos em todas as épocas. É errando, percebendo o erro e corrigindo-o que se chega ao acerto. É escorregando e caindo que se aprende a andar.
Na fase do crescimento, todos vivemos mergulhados em processos desse tipo -sem mestre, sem horário, em clima de livre escolha, sempre prazerosos desafios. É assim que ganhamos o domínio dos movimentos da mão -para abrir uma porta, desenhar, fazer dobraduras, usar talheres. É assim que aprendemos a controlar os braços e as pernas para andar, correr, saltar, bater, chutar, acertar alvos. É ainda dentro desse mecanismo de "feedback" que aprendemos a esperar o site aparecer, a mãe chegar, a dor passar e a engolir desaforos.
O bom é que essa aprendizagem ocorre em ambientes protegidos, onde as consequências dos erros eventuais não são irreversíveis. É possível refazer. Aprendendo a escrever a lápis, a criança tem o recurso de apagar o erro. E, se ela quiser, pode inventar outra coisa para fazer. Estou me referindo a uma época anterior à alfabetização. E a melhor ambientação para isso é a que Monteiro Lobato descreve no "Sítio do Pica-Pau Amarelo". Dona Benta e tia Anastácia sempre estão lá, mas sem intervir. Só participam se convidadas pelas crianças.
No sítio do Pica-Pau Amarelo, não se aprendia só a fazer. Aprendia-se sobretudo a discernir o certo do errado. O sítio é um verdadeiro nascedouro de "moral da história". Nas fábulas, nas lendas e nos contos de fadas, a moral não vem antes dos fatos. A moral nasce das histórias vividas pelos próprios aprendizes do viver.
Do ponto de vista mental -em indiscutível prejuízo do desenvolvimento muscular-, a relação com a maquinaria eletrônica permite muito mais do que a calçada, o quintal e o campinho de antigamente garantiam.
Ganhar domínio do uso de um instrumento -lápis, apontador, papel, bola, skate, patim etc.- é sempre um fato solitário. Cada um do seu jeito, no seu ritmo, vai dominando a relação. Vencida a etapa do domínio técnico, podemos cogitar partilhá-la com os outros. Não dá para jogar queimada antes de aprender a jogar bola.
É na vivência solitária do desenvolvimento das aptidões que aprendemos a distinguir engano de erro. Nessa etapa, vivenciamos a necessidade de criar regras. É aí que vamos inventando jeitos de conseguir persistir sem desistir na primeira dificuldade. O tal do "virtual" das interações da internet também ensina a refazer, a recomeçar, a procurar, a esperar e, eventualmente, a aguentar encontros malsucedidos. Não se pode quebrar a máquina nem brigar com o vizinho, senão ficamos sem o computador ou sem o amiguinho.
Quando transpomos as habilidades adquiridas no exercício solitário, vemo-nos capazes de evitar que desavenças se tornem, por exemplo, inimizade. Ficar de mal com o vizinho ou com o colega de classe complica a vida. Não é porque temos boa mira que vamos jogar pedra no vizinho. Descobrimos o que se pode tolerar e o que não se deve tolerar. É aí a sementeira da ética e da moral nascente.
Conforme amadurecemos, passamos a desenvolver menos habilidades, mas vamos aplicando as adquiridas. Todos sabem que aprender a guiar carro com 40 anos é mais difícil do que com 16. Na adolescência, já não usamos o "feedback" para as mesmas coisas que usávamos na infância. Agora, treinamos a dança, a paquera, o ficar e também a entrevista para empregos etc.
Como existe cada vez menos segurança fora dos muros das casas, nem se pode sonhar com o retorno à calçada. Precisamos, isto sim, olhar o recém-conquistado espaço do universo tecnológico sem implicar com ele. Ele é o espaço seguro que resta para exercitarmos habilidades motoras, mentais e éticas. É nos "chat-rooms", nas pesquisas de internet ou navegando que alargamos nossos horizontes culturais e praticamos a ética nos jogos, nos acordos, no contato com novos parceiros. A internet não é perfeita, mas é o melhor arremedo possível do crescimento em liberdade.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano das Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui todo mês; e-mail: amautner@uol.com.br


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