São Paulo, quinta-feira, 09 de maio de 2002
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Brincar de adulto é saudável, o problema é quando a fantasia vira realidade, e a menina não abre mão do salto alto

Pais reforçam "peruice" das filhas pequenas

ANTONIO ARRUDA
DA REPORTAGEM LOCAL


"Com brilho ou sem brilho?" Cooooom, diz a turma em alto e bom som quando o assunto é o batom, e também a calça, o top e o esmalte. "E o salto do sapato?" Alto, dizem elas sobre a altura do tamanco, da bota e da sandália. Outro detalhezinho que faz a cabeça: o umbigo de fora. "É mais bonito", e além do mais elas estão, como dizem, "um pouco mais maduras e crescidinhas".


As entrevistadas em questão não são as novas top models ou recém-contratadas apresentadoras de programas de entrevistas da TV. Mas crianças que ainda não são nem meninas-moças. Têm entre quatro e dez anos de idade, mas se vestem feito mulheres adultas. Para os pais, esse é um processo natural, uma vaidade imanente, um modo "atual e inevitável" de ser menina. Mas os psicólogos alertam: pode ser uma maneira de antecipar a adolescência e a idade adulta, conferindo às crianças um papel social que elas não devem exercer. E mais, dizem eles: os principais responsáveis por essa miniaturização de um certo modo adulto de ser são os próprios pais -para evitar que alguma criança possa ser prejudicada, o nome das entrevistadas mirins assim como o dos respectivos pais não será revelado. O que faz as garotas de hoje serem tão "peruas"? Ou seja, por que fazer de conta que é gente grande deixou de ser brincadeira e virou comportamento padrão? O mercado da moda e a mídia, por meio de programas de TV e da publicidade, bombardeiam as famílias com padrões de crianças vestidas de mulheres e, em muitos casos, com comportamento de adulto. Porém "mais do que a influência da mídia e do mercado, o que conta é a ausência dos pais", diz Rosely Sayão, psicóloga e colunista da Folha, referindo-se à falta de posicionamento dos adultos em relação a essa realidade. Esse "boom" de meninas-moças, diz Sayão, até começa com um apelo forte do mercado, mas acontece de fato porque existe a resposta positiva dos pais. Silvana Rabello, especializada em psicologia infantil da PUC-SP, é ainda mais taxativa: "A responsabilidade é sempre de quem cria". Isso não significa que os pais tenham essa idéia clara na cabeça. A.T., 42, por exemplo, por mais que discorde das roupas que a filha usa -"ela é muito nova, os sapatinhos de salto são desconfortáveis e fazem mal, e ela tem de ficar levantando a calça toda hora para não cair"-, prefere não interferir nas decisões da filha, G.T., 8, pois diz que é como ela se sente bem. A produção preferida da garota é top com calça jeans, "desse tipo um pouco esticada, meio elástica, que gruda no corpo, e sandália de salto. E sempre carrego duas "piranhas" na bolsa, de reserva", conta a menina, referindo-se ao tipo de presilha que gosta de usar. C.J., 38, acredita que a filha T.J. se vista "um pouco como adulta" não só por uma imposição do mercado, "que de fato é muito forte", mas porque, desde pequena, ela está acostumada a desenvolver "esse lado lúdico de querer ser adulta, que é uma coisa muito mais de teatro, um jeito meio artístico". E, enquanto olha a filha de quatro anos que posa para a foto, o pai M.R., 40, diz: "Ela é "superperuazinha", igual à mãe". A filha se diverte fazendo pose no meio do shopping para o fotógrafo, exibindo o salto da bota preta de couro: "Eu já sou grande um pouquinho", diz ela, que também gosta da "bolsa vermelha de pendurar no braço e de batom roxo." O pai acredita que esse é um comportamento "nato" e que ela gosta de se vestir daquele jeito. Segundo a psicanalista Nara Amália Caron, 61, coordenadora da Comissão de Psicanálise de Crianças e Adolescentes da ABP -Associação Brasileira de Psicanálise, "entre cinco e nove anos de idade, às vezes até mais, as crianças não se vestem, elas são vestidas. Quem cuida da criança é que determina o que ela vai usar ou não". O depoimento de C.C., de 7 anos de idade, fã de tamanco com salto e calça tipo "corsário", confirma: "Na maioria das vezes, é a minha mãe quem escolhe a roupa. Tem coisas de que eu não gosto, tipo shorts e camiseta curta, mas eu ponho mesmo assim". Já a mãe da garota, S.C, 40, diz que em geral é a própria filha quem decide o que usar. O que acontece, diz a psicanalista Nara Caron, é que "as crianças aceitam o que os pais aprovam não porque elas gostam, mas porque acham que assim vão ser valorizadas, vão ter mais espaço na vida. E por isso muitas fracassam na adolescência. Se essas crianças pularem essa fase, quando tiverem 30 anos vão querer usar o sapatinho de tecido e fivela que não usaram na infância". Claro que não se espera que pais ajam assim por maldade, mas porque, antes mesmo dos filhos, estão influenciados pelo mercado e pela mídia. Além do mais, como diz a mãe de C.C., "não é fácil convencer a criança de que determinado sapato de salto está um horror, pois são as opções que o mercado oferece". Os pais que querem vestir os filhos como crianças encontram mesmo dificuldade em encontrar produtos adequados. "Tenho amigos que comentam que tudo o que existe parece coisa para moças em miniatura; o mercado sufoca os pais", diz Caron. Contudo sempre existe a possibilidade de equilibrar o desejo das filhas com o que pode ser mais adequado para elas. "E é bom lembrar que a criança não tem poder de compra; ela não pode pegar o dinheiro e ir sozinha a uma loja", diz Sayão (leia na pág. 11 recomendações para os pais que se preocupam em dosar atitudes exageradas das crianças).

"Peruice" dá trabalho
A garota A.E.T., 9, adora longos brincos. "Só que minha orelha não aguenta muito, quando corro, dói um pouco", lamenta. Já a amiga M.P., 10, fica "com um pouco de medo de rasgar a orelha".
E a bela garota T.J., 9, quando sai sem esmalte, sente-se como se estivesse sem unhas. "Parece que elas não existem." Para a vaidosa M.G.R., de seis anos, o tamanco não deve ficar no guarda-roupa nem na hora de ir ao parque. "Tenho que tirar para subir a escada e depois descer pelo escorregador", diz. Ou seja, é um trabalhão.
Tudo poderia ser uma forma lúdica, saudável e natural de querer ser gente grande. Mas não é exatamente isso o que acontece hoje.
"Antigamente, imitar os adultos era uma brincadeira, fazia parte da ilusão das crianças; hoje, existe a receptividade dos pais e da sociedade para que seja ultrapassado o limite da fantasia. O caráter que se espera dos pequenos é de atitude social. Os próprios pais cobram do filho ou concordam que ele seja um miniadulto", diz a psicanalista Rabello.
E essa transposição do que é brincadeira para o que é real exige das meninas uma atitude que elas não precisariam nem deveriam ter: ficar preocupadas com o "olhar e ser olhado", com o modo de se sentar, de andar, de gesticular.
"A M.R. sempre se preocupa com o que vão falar dela, se ela está melhor vestida que os outros. Sempre quer ser o destaque", confirma a mãe.
"A criança não deve ter essa característica de se preocupar com o olhar alheio; a grande preocupação saudável da criança é se é ou não amada", diz Rabello. Leia mais nas págs. 10 e 11.



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