São Paulo, quinta-feira, 09 de julho de 2009
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OUTRAS IDEIAS

Michael Kepp

Almoço pós-enterro

[...] NOS EUA, O ALMOÇO É PREPARADO POR UM PARENTE E A INTENÇÃO É ALIMENTAR A FAMÍLIA QUE SOFRE

Os funerais brasileiros são rituais misericordiosamente curtos. Há o velório, o corpo é enterrado no cemitério adjacente e a família pode viver o luto em particular, como prefere fazer. Nos EUA, minha pátria, o velório/enterro é o preâmbulo para um invasivo almoço pós-enterro, ainda que receber gente para uma refeição seja a última coisa que muitas famílias em luto queiram.
Como o velório lá é só para os mais chegados, os outros esperam em um cemitério distante até a família e o corpo chegarem. Então, todos assistem em pé a um longo serviço religioso. O almoço permite que se sentem e confraternizem.
Geralmente, é preparado por um parente e a intenção é alimentar a família que sofre, esgotada após o período de cuidados e privações. Mas o luto é um anestésico, que entorpece o estômago e as cordas vocais, mas não o incessante coração.
Por isso, o tal almoço parece criado não para os familiares, traumatizados demais, mas para amigos e parentes que, apesar da perda, chegam com bom apetite e anedotas. Pelo fato de essas refeições ocorrerem no fim de semana, quando mais pessoas podem ir, e porque meu pai morreu numa segunda, a funerária teve que congelar seu corpo embalsamado até domingo. Para mim, esperar uma semana até encerrar esse doloroso capítulo sobre uma perda inconsolável foi uma tortura emocional desnecessária.
O almoço pós-enterro só aumentou a agonia. Parentes que nunca entenderam o humor do meu pai contavam anedotas que deveriam celebrar seu charme cômico, mas que o faziam parecer um palhaço. Apesar de minha tia não servir bebidas alcoólicas para manter o ar solene, eu estava louco para que um uísque viesse me fazer companhia. Quando a perda de uma única pessoa esvazia o mundo, compartilhar espaço com gente incapaz de sentir sua dor pode deixá-lo ainda mais desolado.
O almoço pós-enterro alimenta a mesma compulsão que o sanduíche, uma refeição portátil que lhe permite comer enquanto faz outra coisa, até vivenciar o luto. Também se tornou uma manobra para salvaguardar margens de lucro. Funerárias agora servem refeições porque as cremações eliminaram a ida ao cemitério -e a necessidade de caixões, lápides e covas- e engoliram seu lucro, tendência que essas refeições ajudam a reverter. Pelo fato de os funerais brasileiros despacharem o morto prontamente, uma missa de sétimo dia dá àqueles que perderam o ritual uma segunda chance de oferecer os pêsames, em um ambiente mais confortável do que o das capelas de velório.
No Rio, esses cubículos com pé-direito baixo, quando lotados no verão, deveriam oferecer toalhas. Parecem saunas. Minha aversão a velórios nada tem a ver com a bala perdida que, anos atrás, entrou pela janela de uma capela carioca furando o caixão e o defunto. Morar no Rio tem seus riscos. Mas balas post mortem não doem. Não posso dizer o mesmo do almoço pós-enterro americano.

MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 26 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record) www.michaelkepp.com.br

mkepp@terra.com.br



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