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OUTRAS IDEIAS
Michael Kepp
Almoço pós-enterro
[...] NOS EUA, O ALMOÇO É PREPARADO POR UM PARENTE E A INTENÇÃO É ALIMENTAR A FAMÍLIA QUE SOFRE
Os funerais brasileiros
são rituais misericordiosamente curtos.
Há o velório, o corpo
é enterrado no cemitério adjacente e a família pode viver o
luto em particular, como prefere fazer. Nos EUA, minha pátria, o velório/enterro é o
preâmbulo para um invasivo
almoço pós-enterro, ainda que
receber gente para uma refeição seja a última coisa que muitas famílias em luto queiram.
Como o velório lá é só para os
mais chegados, os outros esperam em um cemitério distante
até a família e o corpo chegarem. Então, todos assistem em
pé a um longo serviço religioso.
O almoço permite que se sentem e confraternizem.
Geralmente, é preparado por
um parente e a intenção é alimentar a família que sofre, esgotada após o período de cuidados e privações. Mas o luto é
um anestésico, que entorpece o
estômago e as cordas vocais,
mas não o incessante coração.
Por isso, o tal almoço parece
criado não para os familiares,
traumatizados demais, mas para amigos e parentes que, apesar da perda, chegam com bom
apetite e anedotas. Pelo fato de
essas refeições ocorrerem no
fim de semana, quando mais
pessoas podem ir, e porque
meu pai morreu numa segunda, a funerária teve que congelar seu corpo embalsamado até
domingo. Para mim, esperar
uma semana até encerrar esse
doloroso capítulo sobre uma
perda inconsolável foi uma tortura emocional desnecessária.
O almoço pós-enterro só aumentou a agonia. Parentes que
nunca entenderam o humor do
meu pai contavam anedotas
que deveriam celebrar seu
charme cômico, mas que o faziam parecer um palhaço.
Apesar de minha tia não servir bebidas alcoólicas para
manter o ar solene, eu estava
louco para que um uísque viesse me fazer companhia. Quando a perda de uma única pessoa
esvazia o mundo, compartilhar
espaço com gente incapaz de
sentir sua dor pode deixá-lo
ainda mais desolado.
O almoço pós-enterro alimenta a mesma compulsão que
o sanduíche, uma refeição portátil que lhe permite comer enquanto faz outra coisa, até vivenciar o luto. Também se tornou uma manobra para salvaguardar margens de lucro. Funerárias agora servem refeições porque as cremações eliminaram a ida ao cemitério -e
a necessidade de caixões, lápides e covas- e engoliram seu
lucro, tendência que essas refeições ajudam a reverter.
Pelo fato de os funerais brasileiros despacharem o morto
prontamente, uma missa de sétimo dia dá àqueles que perderam o ritual uma segunda chance de oferecer os pêsames, em
um ambiente mais confortável
do que o das capelas de velório.
No Rio, esses cubículos com pé-direito baixo, quando lotados
no verão, deveriam oferecer
toalhas. Parecem saunas.
Minha aversão a velórios nada tem a ver com a bala perdida
que, anos atrás, entrou pela janela de uma capela carioca furando o caixão e o defunto. Morar no Rio tem seus riscos. Mas
balas post mortem não doem.
Não posso dizer o mesmo do almoço pós-enterro americano.
MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 26 anos no Brasil, é autor do livro de
crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e
Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br
mkepp@terra.com.br
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