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NEUROCIÊNCIA
Suzana Herculano-Houzel
Alice e os sonhos dos outros
[...] A riqueza de imagens, detalhes e sensações dos sonhos é eco de associações particulares ao cérebro que sonha
Já fiz várias tentativas. Tive uma edição
em formato de bolso,
mas só li as primeiras
páginas. Comprei a versão
grande, comentada pelo matemático Martin Gardner, na
esperança de ter um incentivo a mais, mas ela não saiu da
estante.
Agora comprei uma linda
versão pequena, ilustrada,
em papel bíblia de bordas
douradas, para ler na cama.
De fato, eu a li por várias noites -mas novamente a abandonei, em favor de outras leituras. Por que ainda não consegui chegar ao fim de "Alice no País das Maravilhas"?
Não é uma questão de idioma ou de estilo literário, pois
a prosa de Lewis Carroll, no
inglês original, é bela, agradável, divertida, espirituosa e
fácil de ler. Soa como uma
história contada com capricho a crianças inteligentes.
Várias peripécias de Alice
mais tarde, dei-me conta do
problema: o autor é tão bem-sucedido em descrever as
aventuras de Alice como um
sonho, que elas têm, de fato,
a bizarrice fantasiosa, a presença de uma versão peculiar
de autoconsciência (capaz
até de se autoquestionar, o
que Alice faz o tempo todo), a
descontinuidade característica dos sonhos -e, como
qualquer sonho, só fazem
sentido para o cérebro que os
sonhou.
Se você já passou pela agonia de ouvir um longo relato
de um sonho de outra pessoa, você conhece a sensação.
A riqueza de imagens, detalhes e sobretudo sensações
emocionais dos sonhos é eco
de associações particulares
do cérebro que sonha, e não
pode ser transmitida por palavras. Além disso, descrições de cenas individuais sonhadas por outrem podem
até soar interessantes e inusitadas, mas não há uma história coerente.
Provavelmente devido ao
desligamento, durante o sono, dos sistemas químicos
que permitem a continuidade da memória para além de
uns poucos segundos, as
transições são súbitas e não
seguem uma lógica contínua.
Assim, em poucas páginas,
Alice nada em uma piscina
de suas lágrimas, entra na casa do Coelho Branco para
buscar suas luvas, bate um
papo filosófico com uma lagarta, entra na casa da Duquesa que tem um bebê que
se transforma em porco, em
seguida toma chá com o Chapeleiro Maluco...
Não me entenda mal: admiro a obra, acho cada cena
bizarramente divertida, continuo me empenhando a
chegar ao final do livro e ainda vou ler "Alice no País do
Espelho". Mas ficou a lição:
vou me lembrar de não despejar meus sonhos sobre outras pessoas.
Adoro sonhar,
adoro a experiência de livre
associação sem freios ou
censura. Mas, se mal fazem
sentido para mim...
SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora do livro
"Fique de Bem com o Seu Cérebro" (ed. Sextante) e do blog "A Neurocientista de Plantão"
( www.suzanaherculanohouzel.com )
suzanahh@gmail.com
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