São Paulo, quinta-feira, 09 de julho de 2009
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NEUROCIÊNCIA

Suzana Herculano-Houzel

Alice e os sonhos dos outros

[...] A riqueza de imagens, detalhes e sensações dos sonhos é eco de associações particulares ao cérebro que sonha

Já fiz várias tentativas. Tive uma edição em formato de bolso, mas só li as primeiras páginas. Comprei a versão grande, comentada pelo matemático Martin Gardner, na esperança de ter um incentivo a mais, mas ela não saiu da estante.
Agora comprei uma linda versão pequena, ilustrada, em papel bíblia de bordas douradas, para ler na cama. De fato, eu a li por várias noites -mas novamente a abandonei, em favor de outras leituras. Por que ainda não consegui chegar ao fim de "Alice no País das Maravilhas"?
Não é uma questão de idioma ou de estilo literário, pois a prosa de Lewis Carroll, no inglês original, é bela, agradável, divertida, espirituosa e fácil de ler. Soa como uma história contada com capricho a crianças inteligentes.
Várias peripécias de Alice mais tarde, dei-me conta do problema: o autor é tão bem-sucedido em descrever as aventuras de Alice como um sonho, que elas têm, de fato, a bizarrice fantasiosa, a presença de uma versão peculiar de autoconsciência (capaz até de se autoquestionar, o que Alice faz o tempo todo), a descontinuidade característica dos sonhos -e, como qualquer sonho, só fazem sentido para o cérebro que os sonhou.
Se você já passou pela agonia de ouvir um longo relato de um sonho de outra pessoa, você conhece a sensação. A riqueza de imagens, detalhes e sobretudo sensações emocionais dos sonhos é eco de associações particulares do cérebro que sonha, e não pode ser transmitida por palavras. Além disso, descrições de cenas individuais sonhadas por outrem podem até soar interessantes e inusitadas, mas não há uma história coerente. Provavelmente devido ao desligamento, durante o sono, dos sistemas químicos que permitem a continuidade da memória para além de uns poucos segundos, as transições são súbitas e não seguem uma lógica contínua.
Assim, em poucas páginas, Alice nada em uma piscina de suas lágrimas, entra na casa do Coelho Branco para buscar suas luvas, bate um papo filosófico com uma lagarta, entra na casa da Duquesa que tem um bebê que se transforma em porco, em seguida toma chá com o Chapeleiro Maluco... Não me entenda mal: admiro a obra, acho cada cena bizarramente divertida, continuo me empenhando a chegar ao final do livro e ainda vou ler "Alice no País do Espelho". Mas ficou a lição: vou me lembrar de não despejar meus sonhos sobre outras pessoas.
Adoro sonhar, adoro a experiência de livre associação sem freios ou censura. Mas, se mal fazem sentido para mim...

SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora do livro "Fique de Bem com o Seu Cérebro" (ed. Sextante) e do blog "A Neurocientista de Plantão"

( www.suzanaherculanohouzel.com )

suzanahh@gmail.com



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