São Paulo, quinta-feira, 09 de setembro de 2004
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

outras idéias

dulce critelli

Independência ou interdependência?

"Sei que meu caminho só depende de mim, de mais ninguém. Mas tenho me sentido mal por toda essa responsabilidade...". Essas palavras, de uma leitora de 15 anos, me fizeram pensar muito. Especialmente porque suas idéias certamente têm eco na grande maioria de nós.
Arcar com a responsabilidade de escolher um caminho pessoal é quase um absurdo -e também impossível- se acreditamos que devemos fazê-lo "sozinhos".
Embora não possa ser tirada dos ombros de ninguém, a responsabilidade pela existência é sempre compartilhada. Não há gesto, pensamento, crença, sentimento, desejo que brote e cresça na solidão. Para nós, humanos, existir é algo que só acontece em conjunto.
Nossa cultura, porém, é cega para essa condição humana. O que conta, para ela, é a onipotência da individualidade. O que se valoriza e cultiva é a maior independência possível entre as pessoas. Acredita-se que uma pessoa seja forte, madura, adulta se jamais precisar de alguém.
Cada homem, por si mesmo, deve poder mudar o mundo e transpor qualquer obstáculo. Pensa-se que precisar dos outros é vergonhoso, sinal de uma fraqueza que se deve esconder a todo custo, como um mal, um desvalor. Parece que precisar dos outros -de imediato- nos faz dependentes. Sentimo-nos dominados, subalternos. Assim, quanto mais pessoais as ações e decisões a serem tomadas, mais solitárias elas se afiguram. E, por conseqüência, mais impotentes nos sentimos.
É do espírito de nossa cultura, portanto, associar a independência ao isolamento e também à auto-suficiência. E de confundir atos pessoais com atos solitários. A tecnologia de consumo contribui muito para consolidar e manter essa meta de independência, de auto-suficiência e de solidão.
Há alguns dias, estava na casa de uma amiga e reclamei de uma dor nas costas. Ela, então, muito gentil, me ofereceu um aparelho de massagem que simulava um movimento circular de dedos. Bastava encostar relaxadamente nele. Experimentei. Era horrível aquela sensação de um toque preciso e repetitivo, frio, que não acertava nenhum dos pontos doloridos.
Vendo meu desagrado, minha amiga confessou que também não se acertava com ele. Mas, nos anos 80, de passagem pelos EUA, vira o aparelho numa vitrine e pensara: "Que bom! Se eu comprá-lo, nunca mais vou precisar de alguém que me faça uma massagem nas costas!". Depois de várias tentativas infrutíferas de uso, ela reconhecia que o toque de mãos humanas era insubstituível.


"Embora não possa ser tirada dos ombros de ninguém, a responsabilidade pela existência é sempre compartilhada. Não há gesto, pensamento, crença, sentimento, desejo que brote e cresça na solidão"


Conheço um rapaz que não tem namorada nem amigos, mas diz não se sentir solitário quando está dirigindo seu carro, cuidando dele e lhe dando presentes (som, tapetes, polimento). E uma executiva me disse ter equipado sua casa com freezer, microondas, DVDs, TVs, notebooks e aparelhos sexuais para não precisar de nenhuma companhia.
A tecnologia de consumo para a vida diária dá a ilusão de podermos viver sozinhos e de sermos auto-suficientes.
Independência, solidão e auto-suficiência parecem caracterizar melhor, entretanto, a população mais abastada e que vive nos espaços mais centrais das metrópoles. Nas periferias da cidade, ainda se formam redes de solidariedade, pois a necessidade de sobrevivência e de satisfação das condições vitais básicas requer a ajuda mútua.
Porém não devemos pensar, apressadamente, que a existência dessas redes de solidariedade significa que, para os mais necessitados, a interdependência é um valor. Isso pode ter sido verdade há algum tempo, quando viver em sociedade, sem romantismos, era um acontecimento mais humano ou quando o ser humano importava mais, enfim, quando não éramos tão determinados pelo consumismo e quando, então, a violência não era o recurso mais fácil e garantido para ter a posse de alguma coisa.
Também para os mais necessitados, hoje, precisar dos outros também não é um valor. O que sucede é que, em nome da sobrevivência, se deve passar por cima dessa "vergonha". A crença subjacente, tanto para aquele que ajuda quanto para o que é ajudado, é que os que precisam de ajuda são os fracos e impotentes.
Essa é uma crença infeliz, alicerçada no equívoco de que os homens são indivíduos solitários e de que a sociedade é só o resultado de seu somatório.
Fixados no duelo entre a independência e a dependência, nem percebemos um estágio intermediário: o da interdependência. Nela ninguém comanda nem é comandado. Colaboramos uns com os outros. Fazemos acordos. Instauramos uma rede de cooperação. Nela garantimos nossa autonomia enquanto decidimos e agimos em conjunto.
Na crise estrondosa que vivemos, em que pesam a violência, a corrupção, o esgarçamento dos sistemas políticos e de convivência, todo ato que busque superá-los depende da reflexão e da transformação dos valores básicos dos quais nos alimentamos. É ingênuo desconsiderá-los. E precisamente na interdependência, na cooperação e no agir em conjunto ou no contar com o outro -fundamentos da nossa condição humana- é que germina nossa salvação.

DULCE CRITELLI, professora de filosofia da PUC-SP, é autora dos livros "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana; e-mail: dulcecritelli@existentia.com.br


Texto Anterior: A máquina ainda depende do homem
Próximo Texto: Poucas e boas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.