São Paulo, quinta-feira, 10 de janeiro de 2008
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Anna Veronica Mautner

Escola: fábrica de cidadãos

P arece-me importante manter independentes, na medida do possível, família e escola, para que cada uma delas possa realizar suas funções. À família, cabe forjar homens, e é específico da escola formar cidadãos. Assimilar uma informação nova é tarefa dependente do status que atribuímos à fonte emissora: se vemos a origem da informação como respeitável, nossa tendência é aceitá-la.
Acontece que os professores, importante fonte de informação, vivem uma ampla desmoralização. Não são levados a sério nem pelo governo, nem pelos alunos, passando por pais e também pelos mestres entre si. A família é regida pela tradição, pela afetividade e é predominantemente oral. A escola é uma instituição submetida ao Estado, direta ou indiretamente. São comunidades letradas, com regras estabelecidas dentro de um sistema hierárquico.
Para a criança, é complicado passar do lar, do afeto e da oralidade para a impessoalidade da instituição pública letrada. Na escola, as relações são ordenadas por estatutos, leis escritas, além de ideologias e metodologias educacionais. A transição é realizada por meio do professor, a quem cabe prepará-la para ser cidadão do mundo. Por que um professor que não é prezado deveria ser levado a sério pela criança? Como ela se sente nessa transição é parte da soma dos sinais que ela capta: como os pais se referem aos professores, como percebem a hierarquia da escola e o estado de ânimo do professor.


[...] SE EM CASA SOMOS, CADA UM DE NÓS, ESPECIAL E ÚNICO, É NA ESCOLA QUE DEVERÍAMOS APRENDER A SER IGUAIS PERANTE A LEI


Já vai longe o tempo em que os professores eram cidadãos dignos de todo o respeito: conhecidos pelo nome, saudados respeitosamente quando encontrados e lembrados anos depois. Dizem que tudo mudou e que eles são mal pagos. Concordo parcialmente com o fato, mas não com seus efeitos. Afinal, quem determina salários são adultos que já foram alunos e que são hoje pais de alunos.
Não sei se o dinheiro é determinante. Não são poucos os estudos sobre desempenho de tarefas nos quais o pagamento não é decisivo. Veja-se todo o movimento de voluntariado! Destaco um fato que parece inócuo, mas que simbolicamente é importante. Parece-me significativa a mudança na forma de tratamento dos mestres. Eles deixaram de ser "seu fulano" para ser "tio". É uma penetração do lar na escola.
Junto com a oralidade, veio o desprestígio da escrita que regra as relações no mundo. As pessoas, para bem viver, deverão obedecer às regras da família, da comunidade e da nação. Quando geramos a indefinição entre família, comunidade e nação, estamos dizendo que a informalidade deve prevalecer, pelo menos naquele momento -da entrada na escola.
Para facilitar a adaptação à escola, invadimos sua autoridade de formadora de cidadãos, e o excesso da presença dos pais dilui a fronteira lar-escola.
Não ousaria afirmar, mas ouso levantar a lebre de que esse jeito de lidar com a instituição que tem por missão esculpir cidadãos pode facilitar o desrespeito futuro a regras, leis e estatutos. Se em casa somos especiais e únicos, é na escola que deveríamos aprender a sermos iguais perante a lei. Mas se é aí que descobrimos que existem "jeitinhos" e que mamãe pode nos proteger...
Na vida pública, devemos suportar revezes no estatuto da cidadania. Caso contrário, criamos não um estado de exceção, mas estado de exceções.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br


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