São Paulo, quinta-feira, 10 de fevereiro de 2005
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COMPORTAMENTO

Vivências oferecem qualidade de vida com xamanismo, danças circulares, técnicas de respiração e ioga

Em busca do autoconhecimento

MARCOS DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Daniel Kfouri/FI
Participantes de retiro xamanístico a caminho do topo de uma montanha de 2.200 m em Aiuruoca(MG)


Já em 1975, o compositor baiano Gilberto Gil mostrava em sua canção "Retiros Espirituais" as questões práticas ou "banais" que envolvem a procura pelo autoconhecimento.
Passados 30 anos, o esoterismo e a religiosidade dos retiros -que agora são denominados "vivências"- estão dando lugar a uma motivação bem mais cotidiana: a busca pela qualidade de vida.
Essas atividades, que acontecem geralmente em feriados prolongados ou fins de semana, são realizadas em lugares afastados das grandes cidades para proporcionar um contato intenso com a natureza. Com o foco no autoconhecimento, a idéia desses retiros modernos é desenvolver ferramentas para driblar o estresse do dia-a-dia, a partir de práticas de ioga, danças circulares, rituais xamanísticos, meditação e exercícios respiratórios.
"Fiz psicanálise por mais de 20 anos e levava todos os meus questionamentos e todas as minhas dificuldades para o lado mental. Vi que tinha caminhado muito pouco", afirma o redator de publicidade Cássio Antunes, 45, ao dar os primeiros passos na trilha que leva ao topo de uma montanha com 2.200 m de altura, situada no Parque Estadual da Serra do Papagaio -área de proteção ambiental no município de Aiuruoca, no sul de Minas Gerais.
O suor começa a escorrer pela testa, e o redator conclui: "Agora quero equilibrar o campo mental com as partes físicas e emocionais para que não haja mais uma predominância racional".
Antunes participou da vivência Vision Quest (busca da visão, em inglês) organizada durante o feriado de Carnaval pelo xamã Sthan Xanniã, 34, e pelo Núcleo de Vivências e Terapias aos Filhos da Terra. A busca da visão é um antigo "rito de passagem" realizado por povos nativos a partir de um contato com as forças da natureza. Durante a experiência, cada participante fica quatro dias em jejum e sem falar, retirado no alto da montanha.
"A pessoa convive com ela mesma. A única coisa que vai chateá-la é ela", diz Xanniã, que não gosta de ser chamado de guru ou mestre. Combinando um relógio de pulso cebolão, bermuda, camiseta e colares indígenas, ele olha para o repórter e diz: "Não esperava encontrar um xamã moderno assim, né?".
Xanniã foi criado pela avó -curandeira de uma comunidade indígena, no interior do Ceará- e viveu dois anos entre os índios navajos, nos Estados Unidos, onde aprendeu a liderar cerimônias. Ele traduz seus conhecimentos nativos de cura para uma linguagem terapêutica e prática. Uma de suas vivências mais procuradas é a chamada sauna sagrada, ritual tradicional dos índios norte-americanos. "Essa sauna é muito popular nos Estados Unidos", diz a artesã norte-americana Mar Brown, 31, que já participou de diversos tipos de retiro nos Estados Unidos, na Inglaterra e no Brasil.
Há dois anos, ela mudou de uma comunidade no Carolina do Norte para outra em Minas Gerais por acreditar que o Brasil tem "um governo mais progressista, que quer mais paz do que guerra".
A sauna é feita dentro de uma tenda aquecida com pedras incandescentes, que representam o útero materno. "O calor abre os poros e também a mente. Não é confortável, você se sente num inferno. Mas, na hora de sair, é como um renascimento", afirma Brown, que também participou do Vision Quest.
"As pessoas estão parando de procurar o "guru de plantão" para acionar seus mestres internos", diz o xamã, que só aceita no grupo da vivência pessoas que estejam a procura de objetivos claros. "Tem gente que fica "dependente" e corre atrás de tudo que é workshop de autoconhecimento. A vivência se torna a aspirina da vida dela, serve pra tudo", brinca.

"NEM TÃO ESOTÉRICO ASSIM"
Essa visão pragmática das vivências também pode ser encontrada nos retiros realizados pelo instrutor de ioga e terapeuta corporal Cristovão Oliveira, 40. Fundador do Centro Vidya, em São Paulo, onde dá aulas de ioga e faz massagem ayurvédica, Oliveira passou quatro meses retirado em um mosteiro no Nepal. Quando voltou ao Brasil, passou a realizar vivências inspiradas no cotidiano monástico, que inclui voto de silêncio, cinco horas de práticas de ioga ashtanga (uma vertente mais dinâmica), duas horas de meditação, lavagens estomacais e intestinais e pequenos trabalhos domésticos, como arrumar a cama e lavar os banheiros.
"É uma coisa bem concreta, não é nada mística nem espiritual. Procuro desmistificar essa bobagem em relação aos processos orientais. A ioga é uma ciência que funciona e está viva há 5.000 anos", afirma Oliveira.
Com um cotidiano típico de quem vive na correria de uma cidade grande, o advogado e músico paulistano Juliano do Amaral Carvalho, 30, descobriu a ioga como instrumento para aplacar a ansiedade e já participou de dois retiros.
Quando saiu do primeiro, que durou quatro dias, familiares, amigos e até os integrantes da sua banda notaram diferença no seu modo de agir. "Parei de beber. Vi que a facilidade e a dificuldade de dizer sim são as mesmas de dizer não. Não foi uma coisa forçada nem um sacrifício. Senti a necessidade de tomar algumas decisões", diz o advogado, que também tirou a carne de seu cardápio. "Você aprende a lidar com a rotina. E percebe as riquezas que podem estar contidas nela. Ao me alimentar, senti muito mais o sabor da comida.".
Se período de reclusão trouxe alguns "insights" -palavra muito utilizada por quem organiza e faz vivências-, não foi a pouco custo. "As dores acompanham tudo isso. São dores físicas que têm um fundo extrafísico. O tempo todo você é obrigado a lidar com elas", diz Carvalho.
Para ele, o fato de não poder falar o colocou em contato com ele mesmo: "O pensamento fica à flor da pele. E você não sabe o que fazer com ele. A mente não pára de falar, fica o tempo todo tagarelando dentro de você".
Controlar os pensamentos foi mais penoso que o ritual de lavagens que começa diariamente às 4h30, como a indução do vômito para limpar o estômago, depois de beber oito litros de água morna com sal, e a limpeza das vias nasais com uma sonda que tem o diâmetro de uma carga de caneta Bic -ela entra pelo nariz e sai pela boca, em 15 movimentos de vai-e-vem.
"A volta é um choque. A gente fica mais sensível. As pessoas falam que a gente volta parecendo um extraterrestre. A relação com o tempo é muito diferente. Sua atenção fica focada em outras coisas, diferentes daquelas às quais você estava acostumado", diz Carvalho, que continua fazendo as lavagens uma vez por semana.

REAPRENDENDO A RESPIRAR
Se ficar sem comer ou falar está fora de cogitação como experiência para o autoconhecimento, há outros caminhos menos radicais para desvendar os mundos interiores. Uma vivência que começa a ser procurada no Brasil é a que tem como prática principal o "rebirthing" (renascimento, em inglês).
Desenvolvida na década de 70 pelo terapeuta norte-americano Leonard Orr, essa técnica tem a respiração como foco principal. Mais do que isso: renascimento é respiração.
"Tudo o que vivemos se reflete na nossa respiração. Da mesma forma que as tensões da vida geram tensões na respiração, quando desenvolvemos consciência da nossa respiração e a tornamos relaxada e fácil, estamos produzindo um efeito em todos os campos da nossa vida", afirma a psicóloga Ana Cristina Lima, coordenadora do Instituto de Renascimento de São Paulo, que já participou de treinamento com Orr.
A técnica é muito simples: a pessoa fica deitada em um colchonete e respira profundamente pela mesma via (nariz ou boca), ligando a inspiração e a expiração num ritmo constante e sem pausas -o renascimento também pode ser feito na água, flutuando em uma banheira ou piscina.
Essa respiração circular dura cerca de uma hora e meia, e o praticante é sempre acompanhado pelo terapeuta, chamado de "focalizador".
Após alguns minutos, é possível experimentar diversas sensações físicas, como alterações de temperatura, formigamentos, sensação de flutuação e pequenos tremores no corpo. Podem surgir também flashes de memórias e emoções. Ao final, a sensação é de um relaxamento profundo, como se a pessoa tivesse passado por uma sessão de massagem. "Costumo dizer que é uma massagem interna", afirma a terapeuta.
O praticante nunca fica inconsciente, de acordo com a psicóloga, mas atinge um outro estágio de consciência do corpo e da mente, semelhante ao que se consegue com meditação. "Grande parte do nosso estresse fica registrado nos músculos respiratórios. O renascimento traz à tona as situações que geraram o estresse, dando a possibilidade de integrá-las de uma nova forma", afirma.
Segundo ela, o renascimento é muito eficiente para pessoas com disfunções respiratórias, estresse, ansiedade, fobias, pânico e diversos outros desequilíbrios. "As pessoas estão em busca de qualidade de vida. Não se trata simplesmente de tirar o estresse momentâneo, mas de desenvolver ferramentas para usar no dia-a-dia", diz a psicóloga, explicando que a habilidade de controlar a respiração, adquirida durante as vivências, é fundamental para lidar com momentos de estresse ou ansiedade. "A pessoa vê que ela pode superar seus problemas por conta própria", completa.
Além da respiração, as vivências também contam com exercícios de ioga e meditação, alimentação natural e aulas de anatomia e fisiologia.
A gerente de marketing Flávia Barros, 29, foi fazer uma vivência ao passar por um período de instabilidade emocional provocado por estresse e por pressões do cotidiano. "É um mergulho em você mesmo. É como se fosse possível olhar para dentro e ver os padrões de comportamentos. A partir do momento que você se conhece melhor, passa a ter posturas diferentes em certas situações de ansiedade. Fiquei mais tranqüila e segura", diz Barros, que se considera muito racional. "Não achei a experiência nada esotérica. Não tenho facilidade de chorar, mas chorei muito. É como se houvesse vários monstros escondidos debaixo do tapete", afirma.

RODA DA VIDA
Numa simples brincadeira de ciranda está o mote de outra forma de vivência terapêutica: os retiros de danças circulares. Renata Ramos, 55, sócia da editora e livraria Triom, é uma das pioneiras na divulgação desse tipo de atividade no Brasil.
Nos encontros, são ensinadas danças de roda tradicionais dos mais diversos povos. Em um final de semana, podem ser aprendidos de seis a dez tipos de dança de diversas partes do Brasil e de países como Inglaterra, Grécia e Polônia.
"Com as mãos dadas e os olhos nos olhos, a pessoa deixa a personalidade de lado, sai do seu mundinho e se encontra com o grupo. As pessoas não se compreendem somente mentalmente mas também com o corpo e as emoções", diz Ramos. Segundo ela, esse tipo de dança tem um caráter meditativo que leva ao autoconhecimento. "Isso pode mudar a atitude das pessoas de uma forma lúdica", diz.
A radialista e webdesigner Luana de André Sant'Ana, 30, já perdeu as contas das vivências de que participou. "Não precisa ser bailarino para dar a mão e começar a dançar. Mas é preciso respeitar o ritmo da roda e o seu próprio ritmo. Isso acaba estimulando a atenção e a cooperação. O círculo é um símbolo muito forte de totalidade e fortalece o grupo", afirma a radialista, que hoje também ajuda a ensinar as danças, trabalhando como "focalizadora" nos encontros.
"Não usamos a palavra professor. Acreditamos que as danças estão no inconsciente coletivo. É como se de alguma forma você já conhecesse as danças. O focalizador vai apenas te ajudar a lembrar os passos", afirma.


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