São Paulo, terça-feira, 10 de maio de 2011
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

NEURO

SUZANA HERCULANO-HOUZEL - suzanahh@gmail.com

De improviso


A criatividade exige que o cérebro atue livre do autocontrole que aprendemos a exercer o tempo todo

Tive O privilégio, dias atrás, de assistir a um concerto de improviso do mestre da arte: Keith Jarret. O homem senta-se ao piano, contempla o teclado por alguns instantes... E algo inédito sai de seu cérebro, em ligação direta com o piano. Como?
Improvisos não saem do nada: é preciso anos de treino e muito conhecimento musical para que algo fascinante e harmonioso saia a cada vez.
Por outro lado, tocar com destreza e boa interpretação não basta para improvisar. Por quê?
Hoje, a neurociência já tem uma resposta. Não é porque a criatividade exija a ativação de alguma outra parte não treinada do cérebro; pelo contrário, a criatividade depende das mesmas regiões que são responsáveis pelos sentidos, pela memória, pelo reconhecimento de padrões ""mas atuando de formas diferentes, inusitadas, livres do autocontrole que aprendemos a exercer o tempo todo.
Foram pianistas de jazz tocando de improviso dentro de um aparelho de ressonância magnética funcional que deixaram seu cérebro revelar o truque: abrir mão de controlar a si mesmo.
Em comparação à execução de peças memorizadas, durante o improviso há uma grande redução da atividade de uma região extensa do córtex pré-frontal lateral, que normalmente se encarrega de supervisionar nossas ações, monitorando e controlando o resto do cérebro.
As porções sensório-motoras do córtex continuam funcionando, claro, acompanhando a música e gerando as próximas notas, enquanto aumenta bastante a ativação do polo frontal do cérebro, responsável por nossa personalidade e história pessoal.
Faz sentido. Afinal, a improvisação é uma expressão altamente pessoal, emocional e livre da história do músico que toca.
Improvisar, então, é associar de maneira livre do controle pré-frontal: é deixar o cérebro encontrar melodias de acordo com suas memórias, valores e emoções, sem o cerceamento pré-frontal.
Aprender a improvisar, portanto, é aprender a deixar inertes os ímpetos controladores do córtex pré-frontal, enquanto o resto do cérebro cria com suas associações correndo soltas, naquele estado de "flow" em que a gente se descobre espectador das próprias ações.
Por essa razão, improvisar em público é "nível 2", que exige também ignorar o córtex pré-frontal dos outros e o seu julgamento.
A dica para aprender a improvisar, portanto, é começar sozinho, sem ninguém olhando. De preferência, nem você mesmo!

SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante) e do blog www.suzanaherculanohouzel.com


Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Elas não querem filhos
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.