São Paulo, quinta-feira, 11 de agosto de 2005
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Outras idéias

Anna Veronica Mautner

Viva bem escolhendo e decidindo

"E vitar acidentes é dever de todos" era o que líamos diariamente nos bancos dos velhos bondes. O veículo foi aposentado, mas a frase continua valendo. Sabemos que evitar desconfortos e ameaças é parte importante do cotidiano. Lançamos mão de tudo -sabedoria antiga, superstições, forças sobrenaturais- no afã de evitar ocorrências indesejáveis.


Escolher e decidir podem parecer semelhantes, mas não são idênticos. A escolha pode ser impulsiva, enquanto a decisão requer o uso da razão


Mas não dispomos de bons mecanismos de defesa contra um certo perigo, muito moderno, com o qual nos brindou a cibernética: escolhas banais. Diante dessas opções, estamos indefesos.
Em nossa mente, optar, escolher e decidir se misturam. Decidir continua penoso, exige o uso da razão. Nossas escolhas, cada vez mais freqüentes, nos viciam e banalizam o próprio ato.
Ao tomarmos em mãos, por exemplo, um controle remoto, criamos balbúrdia na nossa relação com tempo e espaço. A velocidade que imprimimos a essas ações pouco tem em comum com a velha tomada de decisão. Escolher e decidir podem parecer semelhantes, mas não se referem a idênticos processos mentais. A escolha pode ser impulsiva, intuitiva, enquanto a decisão requer o uso da razão. Lidar com esses dois estados de consciência exige adestramento.
Aos cinco anos, uma criança já navega. Ela domina o universo tecnológico das mil escolhas, que podem ser feitas, refeitas, deletadas. Um dia, ela irá para a escola, onde se deparará com outra forma de lidar com as informações, que exige outro tipo de abordagem de tempo e espaço.
Do dia em que um antepassado nosso descobriu que podia se defender ao lançar uma pedra até hoje -quando basta apertar um botão para que coisas incríveis ocorram-, passaram-se milhares de anos. Mas existe uma grande diferença entre lançar um bólido e apertar um botão: o primeiro foca e o segundo dispersa.
Está muito difícil viver num cotidiano em que focar e dispersar a atenção ocorrem concomitantemente. Mas não há caminho de volta. Só nos resta desenvolver técnicas para treinar um jeito de viver melhor. Uma solução adotada por alguns é fazer de conta que nada mudou -não têm celular, não ligam a televisão, continuam a escrever à mão. Isolam-se.
Surpreendeu-me, há poucos dias, uma reportagem que mostrava o aumento do número de noviças nas irmandades de clausura. Trata-se de outro possível caminho.
Podemos ainda usar as tecnologias de comunicação como se fossem brincadeiras, em que a previsibilidade e a estabilidade são apenas partes do bem viver.
Como psicanalista, venho observando como as estruturas tradicionais (família, grupos, instituições) vão se esfacelando para conviver com o nomadismo mental criado pelas novas tecnologias. O velho e o novo, em permanente interação, vão gerando novas defesas psíquicas, novas formas de subjetividade. Pela internet, encontramos companheiros, procuramos emprego, fazemos compras. E, assim, a modernidade vai ocupando um enorme espaço da nossa vida.
Tudo isso, no entanto, não amplia nossa autonomia. Ao contrário, cria múltiplas interdependências: provedores não podem falhar, quedas de energia têm que ser evitadas, o celular e cada peça do computador devem estar em pleno funcionamento, assim como o nosso aparelho psíquico, que precisa estar bem calibrado.
A cibernética deslocou o homem do lugar que ocupava no mundo. Nem a Terra é mais o centro do Universo, nem nossos cinco sentidos dão conta do que ocorre à nossa volta, nem nossa razão tem a flexibilidade necessária sem um treinamento especial. Isso nos remete a repensar nosso sistema educacional, que deve dar conta das exigências desse novo mundo.
Quanto mais mergulhamos no universo dos botões, em que escolhemos rápido, mais complicados nos parecem os processos decisórios, em que os critérios continuam relevantes. Sem perceber, viciamo-nos nas escolhas rápidas. Não é a velha ganância que nos rege. É muito mais o fazer do que seu resultado previsto, que seria possuir. Tornamo-nos adictos da mania mental de escolher. A facilidade do processo engana e aparentemente nos satisfaz -sentimo-nos dotados de grande potência. Ilusão pura. Vício.

ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
@ - amautner@uol.com.br



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