São Paulo, quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
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OUTRAS IDÉIAS

Michael Kepp

48 anos depois


[...] AS LÁGRIMAS QUE VERTI EM SEU TÚMULO ME LEMBRARAM DE NOSSA LIGAÇÃO E A FORTALECERAM AINDA MAIS

As relações continuam e até melhoram ou pioram muito depois de a morte aparentemente ter determinado seu fim. O falecimento de um pai dominador pode libertar o filho dependente de seu controle, pôr fim às brigas e permitir que ele veja as qualidades do pai -o que pode aproximá-los. A morte de uma mãe nada maternal pode fazer com que a jovem filha negligenciada se sinta inteiramente abandonada -o que pode afastar mais as duas.
Eu me aproximei mais da minha mãe, levada por um câncer quando eu tinha dez anos, depois de visitar recentemente seu túmulo pela primeira vez.
Eu havia voltado à minha cidade, St. Louis, Missouri, para outro tipo de reunião -com centenas de colegas de escola, um ritual que ocorre a cada década. Eu já tinha ido a três delas. Na quarta, vi que era hora de também visitar minha mãe.
Aos dez, estava traumatizado demais para ir ao enterro e, desde então, minha aversão a lembranças tristes me impedia de visitar seu túmulo. Mas, enfim, aos 58 anos, uma voz interior me encorajava a ir. Então, antes de viajar, pesquisei no Google o nome do cemitério para saber o horário de visita.
No site, havia um link chamado "Encontre um túmulo". Cliquei e digitei o nome da minha mãe no espaço de busca. Na tela, apareceram as palavras "Kepp, Lillian" e a localização do túmulo: fila 76A. Aquela descoberta me fez sentir que mamãe estava, de algum modo, ainda aqui, mesmo que apenas como parte de um mundo virtual.
Sua lápide, uma pedra alta e delgada de mármore, era o vestígio de sua presença no mundo real. A imagem me emocionou tanto que abracei a lápide, como se fosse seu corpo, e comecei a chorar. Era mais um lamento alto e angustiante do que um choro. Minha mulher, que foi comigo ao cemitério, nunca tinha visto ou ouvido tamanha emoção e se surpreendeu que eu fosse capaz daquilo.
Eu também.
Velórios nos quais se vê o rosto do morto ajudam alguns a confirmar que alguém que amam deixou este mundo. O túmulo de minha mãe, como seu nome na internet, confirmou para mim que um traço dela ainda existia neste mundo.
Eu sou prova viva de sua passagem por aqui. Mas o óbvio é fácil de esquecer. E as lágrimas que verti em seu túmulo -prova do quanto ainda sinto sua falta- me lembraram de nossa ligação e a fortaleceram ainda mais.
Assim como a outra reunião... Nela, um amigo do primário lembrou da vez que mamãe nos levou para patinar, apesar de estar muito doente.
Estava tão fraca que caiu, e tivemos de ajudá-la até o carro. "Por você, ela faria tudo", meu amigo me falou.
Aquela conversa e minha visita ao cemitério me fizeram ver por que fui à reunião da escola. Alguns vão a esses rituais para comparar seus sucessos -sejam profissionais, conjugais ou físicos. Outros procuram algo que perderam. Outros vão porque valorizam seu passado, mesmo sem saber o porquê. E, às vezes, não descobrem até o encontro terminar.


MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)

www.michaelkepp.com.br

Leia na próxima semana a coluna de Anna Veronica Mautner


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