São Paulo, quinta-feira, 12 de abril de 2007
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Outras idéias - Anna Veronica Mautner

A era do "liberou total"

Ninguém mais diz para os outros: "O que os outros vão pensar disso?" À primeira vista, cada um se diz capaz de passar ao largo da opinião alheia, imaginando-se assim cada vez mais livre. Só que a liberdade correu demais, invadiu tudo e virou dever. Não é politicamente correto confessar que nos abalamos com restos infames de autoritarismo que estão no olhar alheio. Pondo o outro de escanteio, acreditamos eliminar culpa e vergonha e, assim, ficamos mais "nós mesmos". Contudo, ser livre é também poder transgredir, de preferência ser pego em flagrante.
O pecado hoje é não ser transparente. Vivemos um "liberou total". Todos se mostram e confessam verdades, e a barreira entre o público e o íntimo se evaporou. Assim como expomos delitos, as vergonhas, as dores e as fraquezas são expostas. Os gordos não mais disfarçam seus pneus. A alça do sutiã não é mais escondida e a operação plástica é matraqueada. Não se cerzem mais buracos; tudo é mal e mal alinhavado e, quando não há rasgão, rasga-se.
É assim que chegamos à nova liberdade de ser, o que, para mim, que sou gorda, é o máximo. Camisetas e collants, antes só para magros, hoje vestem quantos quilos forem. Há pouco tempo, gordas só tiravam a canga na beirada da água e um gordo não tirava a camiseta.


[...] Devemos expressar tudo o que sentimos, sem ligar para a dor que podemos provocar? Na ânsia de sermos verdadeiros, esquecemos o outro


Quanto à aparência física, libertamo-nos mesmo. Em matéria de emoção e de desejos, o caminho não foi tão fácil. Devemos expressar tudo o que sentimos, sem ligar para a dor ou o desconforto que podemos provocar? Na ânsia de sermos verdadeiros, esquecemos o outro. Não podemos mais usar esconderijos. Máscaras e disfarces são malvistos. Exibimos nossos desejos e carências, somos impulsivos e excessivos, mostrando o que antes não era exibido nem na intimidade. Casais contam qualquer deslize, de fato ou mesmo só de intenção. E dias de angústia se seguem.
A transparência é exigência da ética atual. Nem por misericórdia ou piedade salvamos nossos semelhantes das duras verdades. É proibido dissimular. Será isso liberdade? Temo que venha provocando dor e mágoa. Como se diz por aí, a verdade às vezes pode ser cruel e nem sempre é necessária.
Ocorreu um terremoto nas relações de alteridade, em nome de nos libertarmos da desaprovação autoritária. Mas será que pensar e negociar, é sempre tão antiético? Para não perder o pique das palavras de ordem que venho usando, aqui vai mais uma: o preço da liberdade é a eterna vigilância. Será que a educação que estamos dando e recebendo nos treina para a necessária vigilância? Espero que sim.
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br


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