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família
A criança real
Enquanto mais de 7.000 pessoas estão na fila para adotar no Estado de São Paulo, cerca de mil crianças esperam por uma nova família; exigências em relação a cor e idade começam a diminuir
FLÁVIA MANTOVANI
DA REPORTAGEM LOCAL
A
publicitária Daniela
Lorenzon, 30, teve
muito menos do que
os nove meses de uma
gravidez para se acostumar à
idéia de ser mãe. Entre a entrada dos papéis pedindo a adoção
e o dia de ter um filho nos braços, transcorreram pouco mais
de dois meses. Os irmãos Thalya e Nathan chegaram à sua casa com três e um ano de idade,
respectivamente.
Se tivesse mantido o perfil de
criança que queria pedir inicialmente -uma menina, com
até um ano de idade-, é provável que Daniela estivesse esperando até hoje. Mas uma conversa com psicólogos e assistentes sociais do Judiciário
mudou as expectativas que ela
e o marido tinham.
"Disseram que, se aumentássemos o limite de idade para
quatro anos, teríamos mais
chances e daríamos mais oportunidades", conta o marido de
Daniela, o também publicitário
Luis Roberto Duarte de Souza,
40. "Abrimos o leque. Acima de
tudo, eu queria ser mãe", completa Daniela.
A história do casal reflete
uma lenta mudança que vem
ocorrendo, em grande parte,
graças ao esforço de grupos de
apoio à adoção e de profissionais das varas da infância e juventude. A intenção é diminuir
o desencontro que existe entre
um batalhão de casais que querem adotar e uma quantidade
menor, mas ainda numerosa,
de crianças que aguardam uma
nova família -enquanto mais
de 7.500 brasileiros e quase
300 estrangeiros estão na fila
da adoção no Estado de São
Paulo, aproximadamente mil
crianças e adolescentes esperam pais adotivos.
O principal motivo desse desencontro é a diferença entre as
expectativas dos pais e a realidade dos abrigos. Enquanto
grande parte das pessoas deseja
adotar só um filho (99%), menor de três anos (83%) e de cor
branca (49%), a maioria dos
abrigados é de cor negra ou parda (52%), maior de três anos
(87%) e possui um ou mais irmãos (56%).
"São crianças que ninguém
quer. Uma quantidade monstruosa de inscrições pede bebês
de até 36 meses. Se juntarmos a
cor e a presença de irmãos, fica
ainda mais difícil", afirma Reinaldo Cintra, juiz auxiliar da
Corregedoria-Geral da Justiça
do Estado de São Paulo.
Os últimos dados sobre o
perfil das crianças abrigadas
são de 2004 e abrangem as que
vivem em 185 instituições na
capital paulista. Cerca de 10%
delas podem ser adotadas -as
outras estão em fase de tentativa de reinserção na própria família, prioridade do Judiciário.
Os dados sobre o perfil pedido pelos adotantes dizem respeito ao Estado de São Paulo
em 2005 -não há cadastro nacional sobre o tema.
Outra informação do estudo
é que, embora a maioria das
pessoas não determine o sexo
da criança ao entrar com o requerimento da adoção, as que
decidem fazer essa escolha ainda preferem as meninas.
Muitas aceitam crianças com
problemas físicos e psicológicos, desde que eles sejam tratáveis. Apenas 2% disseram que
adotariam crianças com doenças mentais que não tenham
tratamento, e 3% afirmaram o
mesmo em relação a problemas
físicos não-tratáveis.
A comparação da pesquisa
com um estudo parecido feito
em 2004 mostra que o interesse pela adoção vem crescendo.
De um ano para o outro, o número de novos pedidos quase
dobrou (leia texto na pág. 10).
Adoção inter-racial
Segundo Reinaldo Cintra, as
pessoas também vêm se importando cada vez menos com a
cor da pele, escolhendo a opção
"indiferente" nesse quesito.
Para a assistente social Ana
Maria da Silveira, autora do livro "Adoção de Crianças Negras: Inclusão ou Exclusão?"
(ed. Veras), ocorreram pequenos avanços, mas ainda existem muitos tabus. "Crianças
negras são preteridas por não
se encaixarem nos padrões de
beleza vigentes em nossa sociedade. Traços como a cor da pele
e o tipo de cabelo ainda são entraves à adoção", afirma.
Silveira diz que o preconceito é manifestado inclusive por
pais adotivos negros, que escolhem crianças com a pele, no
máximo, parda.
A psicanalista Maria Antonieta Pisano Motta, coordenadora do Gaasp (Grupo de Apoio
à Adoção de São Paulo), acredita que uma das barreiras à adoção inter-racial é que a diferença de cor deixa a adoção muito
evidente. "Fica na cara que o filho não é biológico. E o fato é
que muitos pais, mesmo inconscientemente, gostariam de
esconder isso."
Ela também afirma que as
pessoas não admitem ter preconceito, alegando que o que
temem é o preconceito da sociedade. "Esse medo só existe
se o preconceito ressoar nelas.
Se não, elas ririam disso e ajudariam o filho a enfrentar a situação", diz.
Para Delamarque Tavares,
assistente social da Vara da Infância do Fórum da Lapa, em
São Paulo, uma das barreiras à
adoção inter-racial e de crianças mais velhas é o desconhecimento. "Muitos casais não imaginam como é um abrigo,
não sabem que quase todas as
crianças que estão lá são negras
e maiores de cinco anos. Quando se informam, eles se sensibilizam e conseguem migrar da
criança idealizada para a criança concreta", afirma.
Criança-problema
A idéia de que a criança adotada tem mais chance de se tornar problemática é um fantasma que assombra muitos casais. Mas uma pesquisa recém-finalizada com 200 pais adotivos de todo o país mostra que a
realidade não é bem assim.
Metade do grupo era formado por pessoas que só tinham
filhos adotivos, e a outra metade, por pais de filhos adotivos e
biológicos. Entre esses últimos,
11% consideraram seus filhos
adotivos mais problemáticos
do que os biológicos.
"Diante do estigma de que a
adoção sempre dá problema, o
fato de 89% dos pais não considerarem os filhos adotivos mais
difíceis é um dado muito expressivo", afirma a autora do
estudo, a psicóloga Suzana
Schettini. Para 52% dos pais, as
dificuldades foram iguais; 32%
disseram que os problemas foram diferentes para cada filho;
para 5%, os biológicos foram
mais difíceis.
"Muitos pais ficam com pena
de o filho adotivo já ter sofrido
rejeição e acabam superprotegendo, o que pode criar um pequeno tirano. Mas, quando a
educação é equilibrada, isso
não acontece", diz Schettini.
A pesquisa também mostrou
que a resistência de um ou mais
membros da família à adoção
contribui para tornar os filhos
mais problemáticos. Cerca de
40% dos pais adotivos enfrentaram rejeição de parentes
-avós, irmãos, filhos e até de
um dos membros do casal.
"Vimos que 17% dos companheiros não queriam adotar,
mas se submeteram ao desejo da outra pessoa. Isso
é ruim, pois é muito importante que os dois queiram. A parte
do casal que não estava segura
terá dificuldade de assumir o
papel de pai ou mãe. Na primeira briga, jogará isso na cara do
outro", diz a psicóloga.
Outra crença popular que a
pesquisa abordou foi a idéia de
que os meninos adotados são
mais problemáticos. Não houve
nenhuma associação entre o
gênero da criança e problemas
de comportamento.
O medo de adotar uma criança mais velha também é uma
constante entre os pais. Segundo Maria Antonieta Motta, do
Gaasp, essa é uma das angústias
trazidas por eles às reuniões.
"Eles têm medo das marcas que
a criança já tem, do sofrimento
que ela já viveu. Digo que as
crianças precisam ter uma experiência diferente para florescer de outra forma. A capacidade de resistir a situações adversas existe e só precisa ter a
oportunidade de se manifestar.
Pode ser que ela precise de ajuda nesse processo, mas não necessariamente", diz.
A psicóloga Marlizete Maldonado Vargas, autora do livro
"Adoção Tardia: da Família Sonhada à Família Possível" (ed.
Casa do Psicólogo), afirma que
casais que já têm filhos são
mais flexíveis em relação à idade. "A maioria das pessoas que
se inscrevem para a adoção não
pode ter filhos. Nessas situações, muitas preferem bebês,
até para vivenciar a maternidade desde o início."
Ela confirma que muitos pais
demonstram medo de que a
criança tenha problemas de
adaptação por já ter vivido
muito tempo no abrigo. "Não
podemos dizer que não haja
problemas. De fato, existe uma
história anterior, que marcou a
criança. Mas o que vemos é
que, quando elas desejam ser
adotadas, o progresso ocorre
rapidamente."
A possibilidade de adotar irmãos também gera muitas dúvidas. Geralmente, a decisão da
Justiça é não separá-los, principalmente se houver vínculos
entre eles e se eles se reconhecerem como uma família dentro do abrigo.
Para Motta, essa pode ser, na
verdade, uma situação facilitadora para os pais. "Os irmãos se
apóiam, estão acostumados a
cuidar um do outro. Claro que
levar uma ou duas crianças para casa faz muita diferença, inclusive financeiramente. É preciso ver as condições de cada família em relação a espaço, tempo e situação econômica."
Revelação
O velho dilema sobre quando
e como contar para a criança
que ela é adotada persiste. A recomendação dos especialistas
em relação a isso é unânime: o
ideal é tratar a situação com naturalidade desde cedo.
"As pessoas ainda escondem
e ficam preocupadas com o momento da revelação. Mas só revelamos o que está escondido.
Isso não deveria ser escondido
nunca. Da mesma forma que
conversamos naturalmente sobre o dia em que um filho biológico chegou da maternidade,
podemos falar sobre o dia em
que se buscou o filho adotivo no
abrigo", sugere a psicóloga Maria Antonieta Motta.
Para ela, detalhes mais pesados sobre a história da criança
-se ela tiver sido encontrada
no lixo, por exemplo- não devem ser necessariamente expostos. "Isso não acrescenta
nada. A criança tem o direito de
saber a história dela, mas tudo
dentro dos limites que seu ego
possa suportar."
De acordo com a psicóloga
Suzana Schettini, sua pesquisa
mostrou que as crianças que ficaram sabendo que eram adotadas antes dos dois anos de
idade tiveram menos problemas de comportamento e dificuldades escolares.
Ela também ressalta a importância de não estabelecer
uma competição com a família
biológica, depreciando-a. "Não
se deve fazer uma divisão entre
a família boa, que cria a criança,
e a família má, que não pôde ficar com ela. O filho acaba ficando refém entre as duas. A origem dele é importante e tem de
ser respeitada", afirma.
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