|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
s.o.s.família
Pais e professores desvirtuam "combinados'
rosely sayão
Muitos pais querem educar seus filhos de
um modo mais democrático e participativo. Isso significa permitir às crianças que tenham voz ativa nas questões que lhes dizem
respeito, que as afetam. Tudo bem: esse anseio
de uma relação mais aberta e respeitosa com
os filhos é legítimo e, aliás, muito pertinente
nos tempos atuais. Entretanto é preciso considerar algumas questões importantes a respeito de como essa relação tem sido construída
por muitos pais. Escolhi um conceito muito
utilizado por eles -e também por professores
no ambiente escolar- para essa reflexão: os
tais "combinados".
A relação dos pais com seus filhos e o tipo de
educação que eles escolhem praticar começa a
ser delineada desde muito cedo. Por isso vamos considerar o uso que os pais fazem dos
"combinados" com filhos de até seis anos,
mais ou menos, ou seja, desde o início de seu
estabelecimento.
Combinado significa acordado, pactuado.
Todo adulto já experimentou algum tipo de
pacto ou de acordo na vida. Afinal, os relacionamentos são mediados por esses princípios.
Vamos tomar como exemplo uma situação
bem simples: dois amigos -adultos, é bom
lembrar- combinam de encontrar-se em um
restaurante para um jantar.
Para um combinado tão simples e trivial
quanto esse, os dois precisam, em primeiro lugar, querer o encontro. Mas, além de querer, é
preciso também realizar, ou seja, tomar a decisão. Para um jantar a dois, é necessário que
ambos escolham fazer isso naquele dia determinado, e não outra coisa qualquer. Além disso, precisam assumir o compromisso de renunciar a qualquer outro evento que possa
surgir posteriormente e que coincida com o
horário previamente combinado. Por aí já dá
para perceber que combinar algo com alguém
exige, no mínimo, compromisso, responsabilidade, maturidade para tomar decisões e auto-regulação.
Agora vamos pensar em um exemplo também simples de um "combinado" que pais começam a fazer com seus filhos pequenos. A
cena que vou contar observei no corredor de
um shopping. Um garoto que aparentava ter
entre cinco e seis anos insistia com a mãe para
que ela o levasse para tomar um sorvete. A
mãe argumentou -timidamente, devo dizer- que ele acabara de lanchar. Diante da
persistência do filho, ela "combinou" que
compraria o sorvete desde que ele a acompanhasse sem dramas até uma loja a que precisava ir. O garoto concordou no ato, é claro. Mas,
menos de dez minutos depois, voltou a choramingar e a gritar pelo sorvete. Tudo o que a
mãe fazia era lembrar ao filho o "combinado".
A reação dele diante da atitude dela? Ignorava-a.
O garoto reagia assim porque não tinha como bancar o que a mãe chamara de combinado, ou seja, ele não tinha feito acordo nenhum.
Apenas deixara, por alguns minutos, de continuar a fazer a birra só porque vislumbrara,
momentaneamente, a chance de tomar o sorvete que tanto queria. Mas, nessa idade, em geral, a criança ainda não controla o próprio corpo e suas reações nem tem autonomia para se
conter, por isso voltou com a birra. Não podemos dizer que ele não cumpriu o combinado;
apenas não combinou nada.
Se a mãe tivesse afirmado que iria comprar o
sorvete depois de fazer o que precisasse e, nesse período, tivesse feito algo para ajudar o filho
a se conter, a esperar, teria sido muito mais
sensata. Teria sido mãe, teria agido como
adulto responsável com seu papel diante de
uma criança. Mas, do jeito que as coisas se armaram, o filho assumiu o papel de irresponsável.
Muitos pais e professores têm agido assim
com boas intenções. Mas é assim que o conceito de combinar, acordar, pactuar, tem sido
desgastado e desvirtuado. Já está na hora de
inventarmos essa ansiada educação democrática com mais maturidade. Da nossa parte.
ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e
autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha), entre
outros; e-mail: roselys@uol.com.br
Texto Anterior: Lesões ocorrem mais na parte superior do corpo Próximo Texto: Poucas e boas: Osteoporose deve ser prevenida na infância Índice
|