São Paulo, quinta-feira, 13 de maio de 2004
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s.o.s.família

Pais e professores desvirtuam "combinados'

rosely sayão

Muitos pais querem educar seus filhos de um modo mais democrático e participativo. Isso significa permitir às crianças que tenham voz ativa nas questões que lhes dizem respeito, que as afetam. Tudo bem: esse anseio de uma relação mais aberta e respeitosa com os filhos é legítimo e, aliás, muito pertinente nos tempos atuais. Entretanto é preciso considerar algumas questões importantes a respeito de como essa relação tem sido construída por muitos pais. Escolhi um conceito muito utilizado por eles -e também por professores no ambiente escolar- para essa reflexão: os tais "combinados".
A relação dos pais com seus filhos e o tipo de educação que eles escolhem praticar começa a ser delineada desde muito cedo. Por isso vamos considerar o uso que os pais fazem dos "combinados" com filhos de até seis anos, mais ou menos, ou seja, desde o início de seu estabelecimento.
Combinado significa acordado, pactuado. Todo adulto já experimentou algum tipo de pacto ou de acordo na vida. Afinal, os relacionamentos são mediados por esses princípios. Vamos tomar como exemplo uma situação bem simples: dois amigos -adultos, é bom lembrar- combinam de encontrar-se em um restaurante para um jantar.
Para um combinado tão simples e trivial quanto esse, os dois precisam, em primeiro lugar, querer o encontro. Mas, além de querer, é preciso também realizar, ou seja, tomar a decisão. Para um jantar a dois, é necessário que ambos escolham fazer isso naquele dia determinado, e não outra coisa qualquer. Além disso, precisam assumir o compromisso de renunciar a qualquer outro evento que possa surgir posteriormente e que coincida com o horário previamente combinado. Por aí já dá para perceber que combinar algo com alguém exige, no mínimo, compromisso, responsabilidade, maturidade para tomar decisões e auto-regulação.
Agora vamos pensar em um exemplo também simples de um "combinado" que pais começam a fazer com seus filhos pequenos. A cena que vou contar observei no corredor de um shopping. Um garoto que aparentava ter entre cinco e seis anos insistia com a mãe para que ela o levasse para tomar um sorvete. A mãe argumentou -timidamente, devo dizer- que ele acabara de lanchar. Diante da persistência do filho, ela "combinou" que compraria o sorvete desde que ele a acompanhasse sem dramas até uma loja a que precisava ir. O garoto concordou no ato, é claro. Mas, menos de dez minutos depois, voltou a choramingar e a gritar pelo sorvete. Tudo o que a mãe fazia era lembrar ao filho o "combinado". A reação dele diante da atitude dela? Ignorava-a.
O garoto reagia assim porque não tinha como bancar o que a mãe chamara de combinado, ou seja, ele não tinha feito acordo nenhum. Apenas deixara, por alguns minutos, de continuar a fazer a birra só porque vislumbrara, momentaneamente, a chance de tomar o sorvete que tanto queria. Mas, nessa idade, em geral, a criança ainda não controla o próprio corpo e suas reações nem tem autonomia para se conter, por isso voltou com a birra. Não podemos dizer que ele não cumpriu o combinado; apenas não combinou nada.
Se a mãe tivesse afirmado que iria comprar o sorvete depois de fazer o que precisasse e, nesse período, tivesse feito algo para ajudar o filho a se conter, a esperar, teria sido muito mais sensata. Teria sido mãe, teria agido como adulto responsável com seu papel diante de uma criança. Mas, do jeito que as coisas se armaram, o filho assumiu o papel de irresponsável.
Muitos pais e professores têm agido assim com boas intenções. Mas é assim que o conceito de combinar, acordar, pactuar, tem sido desgastado e desvirtuado. Já está na hora de inventarmos essa ansiada educação democrática com mais maturidade. Da nossa parte.


ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha), entre outros; e-mail: roselys@uol.com.br


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