São Paulo, quinta-feira, 13 de maio de 2004
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outras idéias

Esse nômade vai atravessando classes, nações e especializações, passando direto por todo tipo de barreira formal, criando uma Terra do Talento sem virtuosismos

Marcha unida e solidária

anna veronica mautner

Escrevo a propósito de um espetáculo: o "Samwaad - Rua do Encontro", de Ivaldo Bertazzo, seu criador-diretor-produtor. Sempre uma só vez por ano, como se fora festa de fim de ano escolar, Ivaldo apresenta um evento novo com intérpretes sempre outros, transmitindo sempre a mesma mensagem -alegria. Sua originalidade está na mistura de corpos quase nunca perfeitos nas trilhas sonoras que vão do pré-renascentista ao contemporâneo, não importa de que nação ou estilo. Falar de Ivaldo é contar a história de um quase sexagenário nômade com raízes profundas num mundo que, para ele, parece não ter fronteiras ou épocas e onde ele atua como se tivesse raízes profundas.
É um nômade que lidera, um eremita que nunca está só, que une pelo gesto, sem palavras. Esse nômade -social, geográfico e expressivo- vai atravessando classes, nações e especializações, passando direto por todo tipo de barreira formal, criando uma Terra do Talento sem virtuosismos (tal como a Terra do Nunca).
Acompanho Ivaldo, às vezes de perto, às vezes de longe, desde quando ele tinha cerca de 15 anos e eu não confesso os meus. Venho vendo-o atravessar obstáculos e fronteiras como se tudo isso não passasse de líquidos ou gasosos. Sem som, sem estardalhaço e, muito importante, sem grito de vitória. É claro que deve ter tropeçado muitas vezes, pois não há caminho sem pedra. Hoje, olhando para trás, parece que os tropeços para ele sempre foram oportunidades de acumular mais experiência e de construir sabedoria. Seus espetáculos anuais nos mostram seu paradeiro. Ao assistir a eles, ficamos sabendo a quantas ele anda.
Não se assusta com novos começos. Escuta bem e não se importa de receber palpites. Está sempre a fim de aprender. Desde mocinho, lê muito, assiste a tudo que pode e solta-se, entrando em contato com o que percebe de novo. Aproxima-se, de preferência, dos que sonham, imaginam e criam. Não corre na raia dos bem-nascidos, mas também não foge dela. Atravessa o mundo para encontrar mestres na arte da comunicação pelo gesto e pelo movimento. Formou-se, sem currículo, nas escolas dos mestres que ia descobrindo. Distância nunca foi problema. Sua América é a do Sul e sua fonte mais importante foi toda a Eurásia. Bélgica, Espanha, França, Indonésia, Índia, por aí achou alimento. Com livres-docentes e doutores troca: ensina e aprende. Parece não se intimidar diante de títulos, riqueza e carreiras políticas, apesar da admiração que lhes possa dedicar.
Enquanto os de sua geração pagavam prestações do BNH, ele preferia as das passagens de avião que o levavam anualmente para além-mar -para aprender. Sua primeira casa própria comprou há menos de dez anos. Seu sítio veio antes, mas não muito.
Primeiro, descobriu em seus alunos a possibilidade de dançar para o mundo, não só para si próprios. Aí começou a criação de espetáculos de dança de adultos comuns, não de dançarinos jovens, como sói acontecer. Não se pedia que fossem nem magros nem altos nem contorcionistas para poder participar. Era uma festa coletiva, em que os gestos e os movimentos vinham com muita alegria. Para participar dela, bastava topar não ser estrela.
Todo ano, no fim do ano, a escola do Ivaldo produzia um espetáculo: uma farra de alegria e beleza, onde só havia um virtuose, o conjunto. Terminado o espetáculo, Ivaldo partia para ir ter com seus mestres. Lá pela década de 80, entrou a sério num trabalho corporal, teve quase um momento de fisioterapeuta. Misturou tudo. Conseguiu não compartimentalizar. A dança venceu, já profundamente temperada por sua concepção de trabalho corporal. Eis seu fermento do "novo" -sua aura.
Ainda com os alunos no palco, os espetáculos começaram a enveredar por uma consciência nacional mais explícita, à qual se seguiu a consciência da pobreza, que veio tocá-lo muito fundo. Algo mudou.
Se os alunos, não-dançarinos, podiam brilhar nos palcos sem virtuosismo, idade certa e homogeneidade, por que não poderia a população da periferia adentrar também esse mundo de alegria? E ele foi para a periferia. Assim foi feito e deu certo, mas isso não bastou para o nosso nômade ermitão. Ele deu mais um passo: será que existe um gesto próprio para a música oriental que não serve para o nosso batuque brasileiro? A resposta é não. O espetáculo "Samwaad" mostra que a dança hindu é boa para o batuque e que a música hindu serve para o nosso rebolado. É o que Ivaldo apresenta no palco do Sesc Belenzinho a quem quiser entender. Temo não estar conseguindo, nestas mal traçadas linhas, dizer da fluidez da mente criadora de Ivaldo Bertazzo. Para ele, as diferenças são diferentes mesmo. Índia é Índia, Bali é Bali, Brasil é Brasil. É o movimento que vai permitir as interpenetrações que vão ocorrendo sem banalização ou pieguice. E, com Ivaldo presente, há sempre carnaval, um laboratório de liberdade.
No palco, num programa sem intervalo, vai se formando uma idéia, um conceito. Muito tocada saí, vivenciando uma nova dimensão. Vivi um momento sem fronteira, um sonho. Que mais se pode esperar de uma noite de teatro?


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui uma vez por mês; e-mail: amautner@uol.com.br


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