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outras idéias
Esse nômade vai atravessando classes, nações e especializações, passando direto por todo tipo de barreira formal, criando uma Terra do Talento sem virtuosismos
Marcha unida e solidária
anna veronica mautner
Escrevo a propósito de um espetáculo: o "Samwaad - Rua do Encontro", de Ivaldo Bertazzo, seu criador-diretor-produtor. Sempre uma
só vez por ano, como se fora festa de fim de ano escolar, Ivaldo apresenta um evento novo com intérpretes sempre outros, transmitindo sempre
a mesma mensagem -alegria. Sua originalidade está na mistura de corpos
quase nunca perfeitos nas trilhas sonoras que vão do pré-renascentista ao
contemporâneo, não importa de que nação ou estilo. Falar de Ivaldo é contar
a história de um quase sexagenário nômade com raízes profundas num
mundo que, para ele, parece não ter fronteiras ou épocas e onde ele atua como se tivesse raízes profundas.
É um nômade que lidera, um eremita que nunca está só, que une pelo gesto, sem palavras. Esse nômade -social, geográfico e expressivo- vai atravessando classes, nações e especializações, passando direto por todo tipo de
barreira formal, criando uma Terra do Talento sem virtuosismos (tal como a
Terra do Nunca).
Acompanho Ivaldo, às vezes de perto, às vezes de longe, desde quando ele
tinha cerca de 15 anos e eu não confesso os meus. Venho vendo-o atravessar
obstáculos e fronteiras como se tudo isso não passasse de líquidos ou gasosos. Sem som, sem estardalhaço e, muito importante, sem grito de vitória. É
claro que deve ter tropeçado muitas vezes, pois não há caminho sem pedra.
Hoje, olhando para trás, parece que os tropeços para ele sempre foram oportunidades de acumular mais experiência e de construir sabedoria. Seus espetáculos anuais nos mostram seu paradeiro. Ao assistir a eles, ficamos sabendo a quantas ele anda.
Não se assusta com novos começos. Escuta bem e não se importa de receber palpites. Está sempre a fim de aprender. Desde mocinho, lê muito, assiste
a tudo que pode e solta-se, entrando em contato com o que percebe de novo.
Aproxima-se, de preferência, dos que sonham, imaginam e criam. Não corre
na raia dos bem-nascidos, mas também não foge dela. Atravessa o mundo
para encontrar mestres na arte da comunicação pelo gesto e pelo movimento. Formou-se, sem currículo, nas escolas dos mestres que ia descobrindo.
Distância nunca foi problema. Sua América é a do Sul e sua fonte mais importante foi toda a Eurásia. Bélgica, Espanha, França, Indonésia, Índia, por aí
achou alimento. Com livres-docentes e doutores troca: ensina e aprende. Parece não se intimidar diante de títulos, riqueza e carreiras políticas, apesar da
admiração que lhes possa dedicar.
Enquanto os de sua geração pagavam prestações do BNH, ele preferia as
das passagens de avião que o levavam anualmente para além-mar -para
aprender. Sua primeira casa própria comprou há menos de dez anos. Seu sítio veio antes, mas não muito.
Primeiro, descobriu em seus alunos a possibilidade de dançar para o mundo, não só para si próprios. Aí começou a criação de espetáculos de dança de
adultos comuns, não de dançarinos jovens, como sói acontecer. Não se pedia
que fossem nem magros nem altos nem contorcionistas para poder participar. Era uma festa coletiva, em que os gestos e os movimentos vinham com
muita alegria. Para participar dela, bastava topar não ser estrela.
Todo ano, no fim do ano, a escola do Ivaldo produzia um espetáculo: uma
farra de alegria e beleza, onde só havia um virtuose, o conjunto. Terminado o
espetáculo, Ivaldo partia para ir ter com seus mestres. Lá pela década de 80,
entrou a sério num trabalho corporal, teve quase um momento de fisioterapeuta. Misturou tudo. Conseguiu não compartimentalizar. A dança venceu,
já profundamente temperada por sua concepção de trabalho corporal. Eis
seu fermento do "novo" -sua aura.
Ainda com os alunos no palco, os espetáculos começaram a enveredar por
uma consciência nacional mais explícita, à qual se seguiu a consciência da
pobreza, que veio tocá-lo muito fundo. Algo mudou.
Se os alunos, não-dançarinos, podiam brilhar nos palcos sem virtuosismo,
idade certa e homogeneidade, por que não poderia a população da periferia
adentrar também esse mundo de alegria? E ele foi para a periferia. Assim foi
feito e deu certo, mas isso não bastou para o nosso nômade ermitão. Ele deu
mais um passo: será que existe um gesto próprio para a música oriental que
não serve para o nosso batuque brasileiro? A resposta é não. O espetáculo
"Samwaad" mostra que a dança hindu é boa para o batuque e que a música
hindu serve para o nosso rebolado. É o que Ivaldo apresenta no palco do Sesc
Belenzinho a quem quiser entender. Temo não estar conseguindo, nestas
mal traçadas linhas, dizer da fluidez da mente criadora de Ivaldo Bertazzo.
Para ele, as diferenças são diferentes mesmo. Índia
é Índia, Bali é Bali, Brasil é Brasil. É o movimento
que vai permitir as interpenetrações que vão ocorrendo sem banalização ou pieguice. E, com Ivaldo
presente, há sempre carnaval, um laboratório de liberdade.
No palco, num programa sem intervalo, vai se
formando uma idéia, um conceito. Muito tocada
saí, vivenciando uma nova dimensão. Vivi um momento sem fronteira, um sonho. Que mais se pode
esperar de uma noite de teatro?
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui uma vez por mês; e-mail:
amautner@uol.com.br
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