São Paulo, terça-feira, 13 de julho de 2010
Próximo Texto | Índice

OUTRAS IDEIAS

ANNA VERONICA MAUTNER - amautner@uol.com.br

Brincando de pegador


Ontem, éramos nós e a natureza; hoje somos nós nos culpando pelas estripulias que ela faz


O HOMEM vem brincando de pegador com a natureza pela história afora.
A natureza já foi confronto obrigatório diário dos homens. Éramos nada ou pouco frente a ela, toda poderosa.
Tateando, fomos desafiando, construindo abrigos, criando roupas, também para nos abrigar das intempéries.
Aperfeiçoamos a crença de que a vitória final sobre a mãe madrasta era previsível, se não iminente. A senhora natureza, ela mesma, nos ajudou a desvendá-la. Elaboramos jeitos diferentes de alimentar e abrigar o corpo. Com o tempo, acumulamos ilusões mais ou menos eficientes para apaziguar terrores e temores que sacudiam a alma, o espírito ou o atual psiquismo.
Eis nos hoje, cercados por uma parafernália de conhecimentos, saberes e produtos, cuja função precípua é proteger nossa vida. Cabe à ciência prolongar a vida do corpo. É um saber que deveria nos tornar mais capazes de criar tudo do qual nós mesmos precisamos.
Mas estamos ameaçados ainda pela própria natureza, que pensávamos ter domado.
O mar ruge, o furacão ataca, os poços de petróleo vazam, as geleiras derretem, começa a chover mais do que antes, enquanto desertos surgem onde antes era verde. A ecologia gera tanto uma ciência quanto uma religião.
Ao mesmo tempo em que a desvendamos, nos iludimos.
Assim foi no início e assim continuamos nós, da nanotecnologia à santificação do verde e do puro.
Agora é o estresse, a pressa, o barulho, o calor que poluem o habitat. Antes, era a natureza e os deuses que ameaçavam e precisavam ser domados e adorados.
Agora, tornamo-nos "os culpados". As religiões que acompanharam pari passu a ciência elevaram o homem quase a deus, capaz de partilhar a culpa com a natureza e seus deuses.
Antes, éramos nós e a natureza; agora, somos nós nos culpando pelas estripulias dela. Verdade ou não, não importa.
Lemos e ouvimos, ininterruptamente, que o nosso tiro saiu pela culatra. No afã de controlar a natureza, para nosso conforto e segurança, acabamos libertando-a. Temos que viver com ela e nela: é a nossa única certeza. Antes, nos víamos como vítimas; hoje, nos vemos como algozes, e somos os mesmos, no mesmo planeta, vivendo nos mesmos espaços.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)


Próximo Texto: Comente, pergunte
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.