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ANNA VERONICA MAUTNER
Gramática: o chato que é bom
[...]
UM TEMPO DE VERBO ERRADO, UMA VÍRGULA MAL COLOCADA, UM ACENTO FORA DE LUGAR E EIS-ME DIZENDO O QUE NÃO PRETENDIA
A natureza nos dotou de
um cérebro capaz de
dar nomes, e nós desenvolvemos a capacidade de, a partir dos nomes,
entender o mundo. Nessa passagem, criamos a gramática.
Essa é uma das mais desprezadas áreas dos currículos escolares. Assim tratam a gramática alunos e quiçá mestres também. Infelizmente, não há
destreza sem exercício. Gramática é exercício de observação da língua. Conhecer a gramática é uma experiência de
nos desprendermos da linguagem para melhor observá-la.
Se eu falo, se me expresso, é
porque pretendo comunicar algo, e isso deve ser feito de tal
forma que o outro me entenda.
Um grito de dor nos fala de dor,
mas não diz qual, onde, de que
tipo. Se eu quiser ser socorrida,
preciso explicar o que está
ocorrendo, não basta assinalar.
Posso dizer, sem querer, o que
não pretendo e não conhecer o
jeito de dizer o que desejo.
Duas abordagens, pelo menos, são básicas para que a gente se comunique a contento:
conhecer de onde vem a linguagem (lingüística e etimologia) e de que jeito ela se organiza. Um tempo de verbo errado,
uma vírgula mal colocada, um
acento fora de lugar e eis-me
dizendo o que não pretendia.
A língua intuitiva, essa que
todos falamos, é o que de mais
humano e específico possuímos. Ela não veio pronta, do
jeito que a encontramos hoje. A
nossa forma de expressão tem
sua história, que é praticamente cúmplice de cada cultura. A
gramática é a organização do
nosso fluxo verbal, é a nossa garantia de dizermos aquilo que
pensamos.
Quando um estrangeiro
aprende a língua só de ouvido,
sem gramática, ele quase sempre perde a liberdade das nuances e dos jeitinhos -a riqueza e
a especificidade de cada língua,
indo da ternura até a raiva.
Quando se estuda o inglês, que
é uma língua dotada de uma estranha gramática, pelo menos
para nós, de origem latina, deparamo-nos com o "spelling"
(ortografia) e com as expressões idiomáticas, tudo vindo do
próprio uso, e não das regras.
O inglês é uma língua de poucas regras e muitas exceções.
As línguas latinas, por outro lado, são regradas por uma extensa gramática, com muitas
regras e poucas exceções.
As suas regras não são oriundas do acaso, constituem um
jeito de raciocinar. Estudar
gramática é pensar frases ou
orações. Achar o sujeito da
ação, a ação presente ou passada, o objeto dessa ação, combinar tempo, modo, número e fazer concordâncias é pensar sobre o que está sendo dito.
Fazer análise sintática, morfológica ou lógica é criar comunicação independentemente
de motivação ou de emoção. O
exercício de nos desprendermos da linguagem e de olhá-la
como algo estranho a nós mesmos é um fantástico exercício
de raciocínio do qual talvez estejamos privando as novas gerações ao não dar ênfase ao estudo da gramática. Estudar
gramática, dizem por aí, é chato. "Pra que serve?" "Para melhor pensar, meu filhinho" -só
que ninguém quer ser lobo
mau hoje em dia.
Não há pianista que não estude escalas, não há esportista
que não faça exercício diário e
não há quem consiga se expressar bem sem ser capaz do distanciamento necessário para
melhor dominar tanto a fala
quanto a escrita.
Até hoje, os cursos superiores mais avançados de física e
de matemática na França dão
preferência a alunos oriundos
do colegial clássico, onde tinham grego e latim. Dizia-se
que chegavam com melhor
treino de raciocínio.
Deixar cair em desuso o
exercício de distanciamento é
grave. Tomar uma sentença
qualquer e analisá-la como
destacada de nós, é esse o exercício. Não é possível interpretar texto sem conhecer a organização da linguagem. A dificuldade de interpretar os textos e de entender os livros está,
pelo menos em parte, na falta
desse exercício que nos leva à
distância ideal para entender
sem se misturar com o enunciado. Isso, em resumo, é função da gramática, um exercício
para compreender o discurso
no mundo.
ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed.
Ágora)
amautner@uol.com.br
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