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OUTRAS IDÉIAS - ANNA VERONICA MAUTNER
Celular, meu amor
Todos o amam e até o
exibem com orgulho.
Ao mesmo tempo, como se se tratasse de
um garoto mimado e endiabrado, todos nós prometemos discipliná-lo. Em vão. Quem é e
donde vem esse "enfant gâté",
esse bem-amado, razão de tanto orgulho, mas que não se sujeita a ser burocratizado?
Nossos esforços não adiantam -ele escapa sempre. Na sala de aula e durante espetáculos, ele é proibido. Tem hora em
que precisa ser calado. O som
de sua lamúria atrapalha, se
bem que possa ser substituído
pelo seu gesto de espernear.
Entrou na vida de todos nós
pela porta da frente e ganha, a
cada dia, mais competências. Já
é capaz de calcular, escrever e
substituir o computador captando e-mails, baixando músicas e registrando imagens de
nossas vidas. E nem podemos
dizer que só falta falar, pois trata-se justamente de um falador.
Falo do celular.
Este gracioso intruso vai invadindo nosso cotidiano, resistindo a todo processo disciplinatório. Pois, se perdesse a rebeldia, deixaria de ser ele mesmo. A relação de cada um de
nós com o celular é pessoal, intransferível e plena de amor e
ódio. Mesmo que alguns queiram eliminá-lo, é difícil resistir
a seus apelos. Sonhamos com
um controle maior sobre ele do
que aquele que temos. Queremos estar conectados e, ao
mesmo tempo, queremos isolamento e sossego. Impossível!
Podemos desligá-lo, mas não
a sua existência virtual -durante seu aparente sono, tudo é
anotado na sua caixa postal.
Não é só essa sua virtualidade
que nos atrai, muito mais interessante é a sua rebeldia.
Mudando de assunto, mas
ainda dentro da mesma preocupação com a autonomia, queria falar do que de mais precioso acarinhamos: nosso tempo
livre. Livres são as horas de improvisar, de ficar à toa -sem
dever e sem culpa. Isso é raro.
Hoje não passeamos: caminhamos, porque faz bem à saúde. Lemos menos por prazer e
mais para nos informarmos.
Até cuidar do corpo deixou de
ser uma precaução médica ou
uma atividade prazerosa e passou a ser dever de todo cidadão.
Conseguimos enquadrar o
que antes era livre. Como
agüentar, então, a presença impertinente, real e virtual, do celular? Ele vai invadindo tudo.
Surpreende-nos quando funciona e quando não funciona
também. Sair sem o celular é
garantia de levar um pito. Bateria descarregada depõe contra
o usuário. Atender o celular durante conversas ou refeições
pega mal com os presentes.
Não atender pega mal com os
ausentes. Quando grita, atrapalha os outros; quando só treme, também. Se cala, nos sentimos abandonados; se o desligamos, pode nos dar a sensação de que deixamos de existir.
Gostaria de dizer que meu
celular é um último reduto não
controlado (pena que não é).
No meu cotidiano, eu o sinto
indomado. Vai nos criando
probleminhas depois de probleminhas, como um garoto
endiabrado. Difícil imaginar a
vida sem celular. Afinal, a facilidade de acharmos uns aos
outros a qualquer momento
tornou-se um "must". É um
resquício de irreverência nessa nossa vida tão ordenada.
O celular não pediu passagem, como fazem os abre-alas
das escolas de samba, nem pede licença para fazer parte do
nosso "eu sou". Enquanto tenho celular, existo.
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed.
Ágora)
amautner@uol.com.br
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