São Paulo, quinta-feira, 13 de dezembro de 2007
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OUTRAS IDÉIAS - ANNA VERONICA MAUTNER

Celular, meu amor

Todos o amam e até o exibem com orgulho. Ao mesmo tempo, como se se tratasse de um garoto mimado e endiabrado, todos nós prometemos discipliná-lo. Em vão. Quem é e donde vem esse "enfant gâté", esse bem-amado, razão de tanto orgulho, mas que não se sujeita a ser burocratizado? Nossos esforços não adiantam -ele escapa sempre. Na sala de aula e durante espetáculos, ele é proibido. Tem hora em que precisa ser calado. O som de sua lamúria atrapalha, se bem que possa ser substituído pelo seu gesto de espernear.
Entrou na vida de todos nós pela porta da frente e ganha, a cada dia, mais competências. Já é capaz de calcular, escrever e substituir o computador captando e-mails, baixando músicas e registrando imagens de nossas vidas. E nem podemos dizer que só falta falar, pois trata-se justamente de um falador. Falo do celular.
Este gracioso intruso vai invadindo nosso cotidiano, resistindo a todo processo disciplinatório. Pois, se perdesse a rebeldia, deixaria de ser ele mesmo. A relação de cada um de nós com o celular é pessoal, intransferível e plena de amor e ódio. Mesmo que alguns queiram eliminá-lo, é difícil resistir a seus apelos. Sonhamos com um controle maior sobre ele do que aquele que temos. Queremos estar conectados e, ao mesmo tempo, queremos isolamento e sossego. Impossível!
Podemos desligá-lo, mas não a sua existência virtual -durante seu aparente sono, tudo é anotado na sua caixa postal. Não é só essa sua virtualidade que nos atrai, muito mais interessante é a sua rebeldia. Mudando de assunto, mas ainda dentro da mesma preocupação com a autonomia, queria falar do que de mais precioso acarinhamos: nosso tempo livre. Livres são as horas de improvisar, de ficar à toa -sem dever e sem culpa. Isso é raro.
Hoje não passeamos: caminhamos, porque faz bem à saúde. Lemos menos por prazer e mais para nos informarmos. Até cuidar do corpo deixou de ser uma precaução médica ou uma atividade prazerosa e passou a ser dever de todo cidadão. Conseguimos enquadrar o que antes era livre. Como agüentar, então, a presença impertinente, real e virtual, do celular? Ele vai invadindo tudo. Surpreende-nos quando funciona e quando não funciona também. Sair sem o celular é garantia de levar um pito. Bateria descarregada depõe contra o usuário. Atender o celular durante conversas ou refeições pega mal com os presentes.
Não atender pega mal com os ausentes. Quando grita, atrapalha os outros; quando só treme, também. Se cala, nos sentimos abandonados; se o desligamos, pode nos dar a sensação de que deixamos de existir. Gostaria de dizer que meu celular é um último reduto não controlado (pena que não é).
No meu cotidiano, eu o sinto indomado. Vai nos criando probleminhas depois de probleminhas, como um garoto endiabrado. Difícil imaginar a vida sem celular. Afinal, a facilidade de acharmos uns aos outros a qualquer momento tornou-se um "must". É um resquício de irreverência nessa nossa vida tão ordenada.
O celular não pediu passagem, como fazem os abre-alas das escolas de samba, nem pede licença para fazer parte do nosso "eu sou". Enquanto tenho celular, existo.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br


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