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Outras idéias - Dulce Critelli
Nem lembro que fumei
"Eu não fumo, não
gosto de fumar"
foi a frase que
mais disse a mim
mesma por uns dois meses
quando, anos atrás, decidi parar de fumar. Por intuição, eu
tentava com esse pensamento
desarmar a vontade do cigarro.
Deu certo. Não sinto falta, não
sonho que estou fumando, não
suporto mais o cheiro nem o
gosto do cigarro. Como não
perdi a memória, sei que fumei,
mas não parece que falo de
mim mesma.
Ao superar um hábito, a pessoa que somos se modifica por
inteiro. No caso de um vício, essa transformação é ainda mais
significativa. Um hábito e um
vício resumem todo o complexo dos modos de ser que desenvolvemos. Desde a maneira como enfrentamos situações diversas até o modo como nos relacionamos com os outros, com
o futuro, com o passado, com a
morte. Eles resumem nossa
personagem e nossa história.
Se a imagem que temos de
nós mesmos não muda, vícios e
hábitos não se desgrudam de
nós e não os superamos. O que
aconteceu comigo foi que a
imagem que tinha de mim mesma como uma fumante e do
modo de viver que se desenrolava por meio dessa personagem na qual eu me reconhecia
desapareceu. Daí, a vontade de
fumar também foi embora. Eu
me tornara aquela que "não
gostava de fumar".
Tão forte quanto a dependência química de uma droga é
a dependência de nossa auto-imagem. Um vício que se consolida em torno de uma identidade pela qual se tem apreço.
Mas o vício numa identidade
é de todos nós. Ele nos guia e
ilumina na existência. É uma
identidade que reafirmamos,
talvez para não nos perdermos
de nós mesmos. Pelo menos, de
"quem" acreditamos que somos. Mesmo sem clareza ou intenção expressa, se nos acreditamos tímidos, agimos timidamente. Se nos vemos corajosos,
enfrentamos desafios.
Vivemos distraídos desse
movimento de auto-afirmação
e, no mais das vezes, ignoramos
a própria imagem que temos a
nosso respeito. Quanto mais
inconscientes, mais contumazes somos nessa auto-afirmação. Então, continuamos fazendo o que prometemos nunca
mais fazer, nos recriminamos
por não termos nos controlado
ou agimos sem nos darmos
conta do que fizemos...
Vícios e hábitos persistentes
só perduram enquanto não tivermos o impulso de reiniciar
uma nova versão de nós mesmos. Dá trabalho e temos recaídas, desilusões e preguiça. Mas,
decididos a assumir a transformação da identidade costumeira, nossos vícios começam a se
desconstruir e nos abandonam,
sem se despedirem e sem deixarem lembrança.
DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e
professora de filosofia da PUC-SP, é autora
de "Educação e Dominação Cultural" e
"Analítica de Sentido" e coordenadora do
Existentia -Centro de Orientação e Estudos da
Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
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