São Paulo, quinta-feira, 14 de setembro de 2006
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Outras idéias - Dulce Critelli

Nem lembro que fumei

"Eu não fumo, não gosto de fumar" foi a frase que mais disse a mim mesma por uns dois meses quando, anos atrás, decidi parar de fumar. Por intuição, eu tentava com esse pensamento desarmar a vontade do cigarro.
Deu certo. Não sinto falta, não sonho que estou fumando, não suporto mais o cheiro nem o gosto do cigarro. Como não perdi a memória, sei que fumei, mas não parece que falo de mim mesma.
Ao superar um hábito, a pessoa que somos se modifica por inteiro. No caso de um vício, essa transformação é ainda mais significativa. Um hábito e um vício resumem todo o complexo dos modos de ser que desenvolvemos. Desde a maneira como enfrentamos situações diversas até o modo como nos relacionamos com os outros, com o futuro, com o passado, com a morte. Eles resumem nossa personagem e nossa história.
Se a imagem que temos de nós mesmos não muda, vícios e hábitos não se desgrudam de nós e não os superamos. O que aconteceu comigo foi que a imagem que tinha de mim mesma como uma fumante e do modo de viver que se desenrolava por meio dessa personagem na qual eu me reconhecia desapareceu. Daí, a vontade de fumar também foi embora. Eu me tornara aquela que "não gostava de fumar".
Tão forte quanto a dependência química de uma droga é a dependência de nossa auto-imagem. Um vício que se consolida em torno de uma identidade pela qual se tem apreço.
Mas o vício numa identidade é de todos nós. Ele nos guia e ilumina na existência. É uma identidade que reafirmamos, talvez para não nos perdermos de nós mesmos. Pelo menos, de "quem" acreditamos que somos. Mesmo sem clareza ou intenção expressa, se nos acreditamos tímidos, agimos timidamente. Se nos vemos corajosos, enfrentamos desafios.
Vivemos distraídos desse movimento de auto-afirmação e, no mais das vezes, ignoramos a própria imagem que temos a nosso respeito. Quanto mais inconscientes, mais contumazes somos nessa auto-afirmação. Então, continuamos fazendo o que prometemos nunca mais fazer, nos recriminamos por não termos nos controlado ou agimos sem nos darmos conta do que fizemos...
Vícios e hábitos persistentes só perduram enquanto não tivermos o impulso de reiniciar uma nova versão de nós mesmos. Dá trabalho e temos recaídas, desilusões e preguiça. Mas, decididos a assumir a transformação da identidade costumeira, nossos vícios começam a se desconstruir e nos abandonam, sem se despedirem e sem deixarem lembrança.


DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


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