São Paulo, quinta-feira, 14 de dezembro de 2006
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Outras idéias - Wilson Jacob Filho

Compulsória

Meu professor foi aposentado. Ao completar 70 anos, em plena forma física e intelectual, foi obrigado a se retirar do cargo de professor titular da Faculdade de Medicina da USP. Não me proponho, em tão pouco espaço, a dimensionar adequadamente o anacronismo dessa determinação. É inconcebível que comemoremos mais uma constatação do aumento da expectativa média de vida do brasileiro, chegando aos 72 anos, e ainda permaneçamos presos a critérios etários para definir o limite da capacidade funcional.
Prefiro relatar o que vi e senti naquela data. Durante a cerimônia que marcou sua despedida, o professor mostrou toda a sua versatilidade de grande líder. Ouviu as palavras de representantes de todos os segmentos com que conviveu nessa longa trajetória -todos insistiram em lhe mostrar o quanto se sentiam impregnados por esse fértil período de convivência. Quando tive, de forma inesperada, o privilégio de lhe dizer espontaneamente o que sentia naquele momento, pude perceber com maior intensidade a gama de emoções expressas no semblante daqueles que lá estavam. Mais que isso, pude encontrar uma vez mais o olhar generoso de quem entendia perfeitamente o que ali era feito em sua homenagem.
Ao tomar a palavra, o professor fez dela o que queria. Serenamente, mostrou a que viera. Deu-nos a exata sensação de quem permanecia ciente de que a vida flui e que, para isso, é fundamental saber evoluir. Falou-nos do passado, do seu e dos nossos. Delineou portas para o futuro e nos legou uma coletânea dos seus pensamentos.
Em nenhum momento, manifestou-se como um aposentado, no sentido melancólico com que o termo costuma ser usado. Fez-nos seguros de que ali se iniciava um novo capítulo do seu infindável romance. Deu-nos mais uma lição. Falou-nos da vida da maneira que só os que viveram muito e intensamente podem falar. Confessou que, há muito tempo, quando convidado a pensar no que faria após a aposentadoria, respondeu simples e profundamente: viver.
Com isso, ele nos propôs, sutilmente, que as vidas são múltiplas e se sucedem de forma encadeada, desde que a vontade de viver permaneça fortalecida. Saí da Faculdade de Medicina da USP acompanhado de muitas e intensas emoções. As horas que se seguiram foram de muita reflexão sobre as inúmeras possibilidades que temos para encaminhar as nossas vidas enquanto vivemos. Apenas a sabedoria adquirida no transcorrer de uma intensa sucessão de experimentos pode se converter em um patrimônio capaz de transformar uma vida longa em uma profícua longevidade. Para nós, que desfrutaremos menos da sua convivência, fica a segurança das lições aprendidas. Para o professor György, que sempre foi Böhm, a certeza de que, daqui em diante, será ótimo.


WILSON JACOB FILHO, professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas (SP), é autor de "Atividade Física e Envelhecimento Saudável" (ed. Atheneu)

wiljac@usp.br

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