São Paulo, quinta-feira, 15 de janeiro de 2009
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OUTRAS IDEIAS

Wilson Jacob Filho

A ampulheta e o tempo


[...] EM NENHUM DOS PERÍODOS QUE SE REPETEM EM NOSSAS VIDAS O QUE SE ESVAI OU SE ACRESCENTA TEM A MESMA FORMA

Desde que o homem se dedicou a medir o tempo, muitas luas e primaveras se passaram. Das medidas baseadas nos ciclos da natureza aos complexos equipamentos do presente, ganhamos muito em precisão.
Hoje somos capazes de distinguir, pelos supercronômetros, aquilo que a olho nu parece simultâneo. Frações do mesmo segundo separam o campeão dos demais classificados em uma prova esportiva. São diferenças que significam muito para as máquinas, mas pouco para a vida.
São raríssimos os fenômenos da natureza em que pequenas variações produzam real diferença. Ao contrário, a discreta oscilação do tempo, para mais ou para menos, é muito mais regra do que exceção. Nós é que nos esmeramos pelo constante desejo de precisão. E, para tal, buscamos formas mais minuciosas de medir o tempo.
Perdoem-me, porém, suíços e japoneses. Apesar da fama e tradição da vossa tecnologia, nada se iguala, em requinte, à relação que o passar do tempo tem com a ampulheta, inventada provavelmente no século 8 por um monge de Chartres, cidade que abriga a maior catedral gótica da Europa.
A ampulheta, cujo nome deriva do latim "ampulla" (redoma), constitui-se de dois frascos cônicos, interligados por uma estreita passagem, por onde flui um pó ou líquido. Foi mais utilizada nos séculos 13 e 14, principalmente como instrumento de navegação. Atualmente, serve como objeto decorativo, usado geralmente como símbolo de longevidade.
Feita a devida apresentação, já posso justificar minha afirmação quanto à sofisticação de sua relação com o tempo. Primeiramente, ao contrário dos relógios convencionais, com ponteiros ou dígitos, imutáveis na forma, na ampulheta, a cada ciclo, desenham-se diferentes depressões na areia do frasco superior e no monte que se acumula no inferior.
Ademais, assim que é revirada, o fluxo de areia parece provocar lenta alteração do seu nível superior, enquanto, ao final, ele parece declinar rapidamente. Trata-se de uma curiosa impressão, decorrente da forma cônica dos frascos.
E não é apenas a areia que muda de frasco, mas também o ar, que flui em sentido inverso. Não é difícil, portanto, fazer dessas observações um exercício sobre o passar do tempo.
À semelhança da areia nos frascos, em nenhum dos períodos que se repetem em nossas vidas, sejam dias, meses ou anos, aquilo que se esvai ou que se acrescenta tem a mesma forma do passado. Igualmente é falsa a ideia de que o tempo corre mais lento ou mais rápido em diferentes fases da vida.
Por fim, a certeza de que não há ação sem reação. O passar do tempo sempre determina ganhos e perdas concomitantes, que não se compensam, mas sempre se equivalem em algum momento.
Nesse virar da ampulheta, em que um novo ano se inicia, haveremos de ficar atentos. Embora o tempo seja cada vez mais bem avaliado, nem por isso está sendo mais bem aproveitado.


WILSON JACOB FILHO, professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas (SP), é autor de "Atividade Física e Envelhecimento Saudável" (ed. Atheneu)

wiljac@usp.br

Leia na próxima semana a coluna de Michael Kepp


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