São Paulo, quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007
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Outras idéias - Anna Veronica Mautner

A vida na Terra

Muitos dos meus colegas vêm escrevendo sobre o fim deste mundo. É provável que o planeta continue, talvez menos bonito e com habitantes menos complexos. Que cara de vida existirá? Não resisto, e lá vem mais uma escrevinhadora pondo sua colher de pau nesse tema de angústia. Há milhares de anos, vimos fazendo uso de uma complexa operação mental chamada consciência. Com agonia, organizamo-la para conviver com a idéia da morte inexorável.
O homem sabe de sua finitude, das várias formas como a morte pode ocorrer e, apesar disso, vive longos períodos em que consegue se esquecer dela. Hoje vivemos sob ameaça e pedindo ação coletiva para conseguirmos sobreviver ao tal aquecimento global. Não vou discutir aqui nossa participação no processo que dizem já estar numa etapa irreversível.
A ficha caiu. O planeta belo e azul está ameaçado de virar a Lua, Marte ou outro planeta, todos menos belos e hospitaleiros. Será que teremos tempo para provocar mutações genéticas ou culturais que dêem conta dessa morte coletiva? Por milhares de anos, vimos lançando mão de artifícios neurais que nos habilitam a gerar fantasias sobre outros mundos que nos aguardariam depois de nossas mortes individuais. Esses mundos vêm nos consolando da tristeza de partir. A nova angústia da humanidade vai se constituindo como se fora uma nova ideologia, ao mesmo tempo em que nos leva de volta a um estado parecido com aquilo que, em certa época, era chamado de barbárie.


[...] É provável que o planeta continue, talvez menos bonito e com habitantes menos complexos


Barbárie sempre é associada a desamor, desrespeito, crueldade. O outro, o que está ao meu lado, lembra-me de que "não mais existir" é o que nos espera. É lamentável, mas essa certeza de nosso fim não está gerando solidariedade. Num processo primitivo de regressão à infância, atacamos o outro no qual passamos a ver estampado nosso destino comum. O respeito, o amor e a solidariedade coletiva diante da data marcada de extinção pelo visto acabam com toda empatia e simpatias mútuas.
Não se trata de uma violência por não haver lugar para dois -trata-se de ódio ao espelho que me mostra o outro. É como se quiséssemos apagar esses processos identificatórios. Parece que não queremos estar presentes nesse final de mundo que a mídia nos traz ininterruptamente. Não ataco a mídia, nem o Protocolo de Kyoto, nem os cientistas, nem as ONGs e todos os que querem ganhar tempo para nos salvar. Tudo isso precisa ser feito. Mas, enquanto isso, lá no fundo, está soterrado o que resta de nós, os deserdados do amor.
Quando Gagarin nos contou, na década de 60 do século passado, que a Terra era azul, ganhamos uma nova dimensão para espalhar nossa esperança de que, de fato, adiante de nós e para sempre, sem dúvida o mundo iria ser bom. Agora nos dizem que o azul vai acabar, e com ele se dilui toda a esperança. O mundo colorido durou pouco. Será que temos neurônios para agüentar essa metamorfose para terra sem cor?
ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br
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