São Paulo, quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007
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Rosely Sayão

Não há mais vergonha

"Sorria, você está sendo filmado." Há tempos, quando começamos com essa prática social de colocar câmeras em locais públicos, esse aviso tinha um sentido bem pertinente. A advertência, além de prevenir os mais incautos de que eles não estavam protegidos do olhar de julgamento do outro, fazia um apelo que ainda tinha sentido naquela época que, por sinal, é bem recente. A interpelação contida no cartaz -em caráter imperativo- buscava fisgar o amor-próprio de cada um que o lesse para que, assim, pudesse mostrar o melhor de si aos outros que o observassem. Afinal, ninguém queria ser flagrado em atitude considerada constrangedora e que pudesse provocar vergonha. Sim: havia vergonha, recato, decoro. Lembro, por exemplo, que no livro "Na Sala com Danuza" -publicado no início dos anos 90-, um trecho dizia que determinado ato não deveria ser praticado nem mesmo na solidão de um banheiro escuro.
Bem, os tempos mudaram. As placas com o citado aviso se multiplicaram e as câmeras também, como um sinal visível de que vivemos numa sociedade do controle. Entretanto, elas registram também o descontrole das pessoas e a desorganização do espaço social compartilhado. Uma cena gravada e apresentada na semana passada em todos os canais de TV e sites com vídeos mostrou o prefeito de São Paulo tendo um chilique porque um cidadão protestava contra um ato de seu governo. O homem, ao ser alvo da ira do prefeito, caiu no choro. A cena, explorada à exaustão, foi patética: dois adultos se comportando como crianças em pleno espaço público, portanto sob o olhar de julgamento de todos.


[...] Não nos envergonhamos mais de nossos descuidos, nada mais parece nos constranger


Está certo que todos os adultos mantêm uma parcela de infância que precisa ser superada diariamente, e essa é a tarefa árdua do exercício de maturidade. Mas parece que atualmente essa nossa cota infantil, ao invés de ser superada, tem sido cultivada com esmero. Além disso, o julgamento do outro não mais nos incomoda nem importa. Não nos envergonhamos mais de nossos descuidos, nada mais parece nos constranger. O aviso "Sorria, você está sendo filmado" ganhou, portanto, um tom irônico. Adolescentes são tentados a fazer caretas e gestos obscenos quando sabem que alguém os observa. À frente de uma câmera, então, eles se superam e perdem qualquer pudor. É uma maneira de dizer "Eu sou assim, o que você tem com isso?". É um modo de enfrentar com insolência o mundo adulto, do qual acabaram de escapar e para o qual se encaminham.
Pois parece que é dessa maneira que os adultos têm se comportado publicamente. Não nos importamos mais -aliás, parece que nos orgulhamos disso- de expor nossas piores qualidades e características aos outros. O roxo, uma cor que já foi associada à vergonha na expressão "roxo de vergonha", passou recentemente para nossa história como cor que simboliza o orgulho que temos de nossas atitudes irrefletidas e muitas vezes violentas -quando um presidente exclamou em um discurso que "tinha aquilo roxo". Uma publicidade veiculada pela TV, ao mostrar tudo o que se pode fazer com o dedo indicador, mostra uma criança com o dedo no nariz enquanto o narrador diz "limpar o salão".
É isso: parece que já não queremos mais mostrar o que temos de melhor aos outros e sim o que temos de pior. Isso mostra um grande desprezo pelos outros, não? Basta assistir a algumas cenas do programa "BBB" para fazer essa constatação. Mas não nos iludamos: isso não ocorre apenas nesse programa, mas no cotidiano de nossa vida pública. Será que concluímos que o que nos une e o que nos equipara na convivência pública são nossas mazelas?

ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha)
roselysayao@folhasp.com.br
blogdaroselysayao.blog.uol.com.br



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