São Paulo, quinta-feira, 15 de maio de 2008
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OUTRAS IDÉIAS

Dulce Critelli


O Sonho de Cassandra

Assisti a "O Sonho de Cassandra", de Woody Allen, que estreou nos cinemas de São Paulo. O tema é homicídio premeditado e as conseqüências morais do gesto: remorso, culpa, indiferença...
Allen já trabalhou a temática, explorando perspectivas diferentes, em outros filmes, como "Crimes e Pecados", "Match Point" e "Scoop". E é também este o assunto que Dostoiévski explora longamente em "Crime e Castigo", um de seus mais famosos romances. Na mitologia, Cassandra profetizava desgraças. No filme, Sonho de Cassandra é o nome de um barco, comprado por dois irmãos: Terry e Ian.
Por meio do barco, eles se aproximam da sua infância e dos tempos que passavam na companhia do tio rico. O mesmo tio que, em troca da promessa de ajuda e recompensa financeira, agora lhes pede que matem um homem. O que acontece com eles após esse assassinato premeditado?
Ian acredita que fez o que deveria fazer para poder ter o sucesso com que sonhava. Terry arde em culpa e em remorso e, não suportando conviver com a memória do gesto cometido, pensa em se entregar à polícia ou em se suicidar.
Em uma conversa com o irmão, pergunta: "... e se Deus existir?" É como se perguntasse: qual é o castigo para quem faz o mal?
Terry é o personagem em quem se manifesta uma das marcas mais originárias da nossa condição humana: somos criaturas nas quais a consciência se desdobra em consciência moral. Distinguimos entre o bem e o mal e, então, nos angustiamos diante de nossas ações.
É o que nos conta o Gênesis. Por meio da consciência do bem e do mal, descobrimos nossa presença no mundo e nos entendemos como criaturas individualizadas, capazes de compreensão, de escolha e de decisão.
Assim como Dostoiévski, Woody Allen parece afirmar que o homicídio premeditado é o principal ato humano em que a consciência moral se torna totalmente emergente. Sem as justificativas que atenuariam o seu significado, como a guerra ou a defesa da própria vida, o homicídio premeditado implica uma escolha deliberada.
Enquanto Terry se consome no arrependimento, Ian, o outro irmão, tenta justificar seu ato como uma espécie de solidariedade familiar, mas age em benefício próprio, em nome do enriquecimento pessoal.
Ian representa a consciência moral do homem moderno que elegeu a riqueza como o único deus diante do qual se curva e diante do qual pode se sentir fracassado, mas sem angústias.
O assunto do filme coincide com o conjunto de acontecimentos recentes: homicídios, estupros, seqüestros, torturas políticas... E a pergunta de Terry certamente está em nossa própria consciência.
E se Deus existir?


DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br



Leia na próxima semana a coluna de Wilson Jacob Filho


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