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OUTRAS IDÉIAS
Dulce Critelli
O Sonho de Cassandra
Assisti a "O Sonho de
Cassandra", de
Woody Allen, que estreou nos cinemas de
São Paulo. O tema é homicídio
premeditado e as conseqüências morais do gesto: remorso,
culpa, indiferença...
Allen já trabalhou a temática,
explorando perspectivas diferentes, em outros filmes, como
"Crimes e Pecados", "Match
Point" e "Scoop". E é também
este o assunto que Dostoiévski
explora longamente em "Crime
e Castigo", um de seus mais famosos romances.
Na mitologia, Cassandra profetizava desgraças. No filme,
Sonho de Cassandra é o nome
de um barco, comprado por
dois irmãos: Terry e Ian.
Por meio do barco, eles se
aproximam da sua infância e
dos tempos que passavam na
companhia do tio rico. O mesmo tio que, em troca da promessa de ajuda e recompensa
financeira, agora lhes pede que
matem um homem. O que
acontece com eles após esse assassinato premeditado?
Ian acredita que fez o que deveria fazer para poder ter o sucesso com que sonhava. Terry
arde em culpa e em remorso e,
não suportando conviver com a
memória do gesto cometido,
pensa em se entregar à polícia
ou em se suicidar.
Em uma conversa com o irmão, pergunta: "... e se Deus
existir?" É como se perguntasse: qual é o castigo para quem
faz o mal?
Terry é o personagem em
quem se manifesta uma das
marcas mais originárias da nossa condição humana: somos
criaturas nas quais a consciência se desdobra em consciência
moral. Distinguimos entre o
bem e o mal e, então, nos angustiamos diante de nossas
ações.
É o que nos conta o Gênesis.
Por meio da consciência do
bem e do mal, descobrimos
nossa presença no mundo e nos
entendemos como criaturas individualizadas, capazes de
compreensão, de escolha e de
decisão.
Assim como Dostoiévski,
Woody Allen parece afirmar
que o homicídio premeditado é
o principal ato humano em que
a consciência moral se torna totalmente emergente. Sem as
justificativas que atenuariam o
seu significado, como a guerra
ou a defesa da própria vida, o
homicídio premeditado implica uma escolha deliberada.
Enquanto Terry se consome
no arrependimento, Ian, o outro irmão, tenta justificar seu
ato como uma espécie de solidariedade familiar, mas age em
benefício próprio, em nome do
enriquecimento pessoal.
Ian representa a consciência
moral do homem moderno que
elegeu a riqueza como o único
deus diante do qual se curva e
diante do qual pode se sentir
fracassado, mas sem angústias.
O assunto do filme coincide
com o conjunto de acontecimentos recentes: homicídios,
estupros, seqüestros, torturas
políticas... E a pergunta de
Terry certamente está em nossa própria consciência.
E se Deus existir?
DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e
professora de filosofia da PUC-SP, é autora
de "Educação e Dominação Cultural" e
"Analítica de Sentido" e coordenadora do
Existentia -Centro de Orientação e Estudos da
Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
Leia na próxima semana a coluna de Wilson Jacob Filho
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