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ROSELY SAYÃO
Heranças de família
Recentemente, li um
artigo sobre o caráter
descartável de quase
tudo na sociedade
que enfatiza o consumo. Um
trecho me chamou a atenção,
porque o autor ressaltou uma
perda significativa. Cada vez
menos as pessoas deixam de
herança aos filhos algum objeto
de uso doméstico. Isso ocorre
porque quase todos têm pouca
durabilidade e também porque
a moda é muito transitória.
Ele usou exemplos interessantes: até há pouco tempo,
quase todas as famílias tinham
algum móvel antigo que pertencera a algum antepassado
-ou uma batedeira de bolo,
uma máquina manual de moer
carne etc. Lembrei-me de que
tenho, em minha sala, um móvel antigo comprado por meu
pai antes de eu nascer. Toda vez
que passo por ele, lembro-me
com carinho de meu pai, da minha infância e de seus ensinamentos. Sempre me emociono.
Mais do que decorar a casa, a
função desses objetos é a de
corporificar a história da família, lembrar às pessoas as suas
origens. Pelo visto, as novas gerações não terão essa sorte.
Tal pensamento me fez associar a um outro: assim como os
objetos de uso geral têm se tornado descartáveis, as tradições
familiares têm se perdido. Corremos o risco de nos tornarmos
uma geração de famílias anônimas: sem identidade própria,
sem tradições nem costumes.
Desse modo, tanto faz ter este
ou aquele sobrenome.
Muitos pais têm desistido de
transmitir aos filhos o que receberam de seus pais no convívio
familiar: certos costumes de
reuniões com parentes, de estilo de comemorar datas e presentear, de maneiras de encarar as dificuldades da vida e,
principalmente, o valor de algumas atitudes. Tudo isso em
nome da mudança dos tempos.
Um fato é verdadeiro: o mundo hoje é diferente do mundo
em que esses pais foram criados, por isso parece que nada
do que aprenderam com seus
pais serve para a educação de
seus filhos. Mas essa idéia tem
um problema: o de que a história pode ser ignorada.
Isso significa, como um amigo gosta de dizer, que os pais
precisam, a cada dia, na relação
com os filhos, "inventar a roda,
começar do zero". Isso torna
tudo mais difícil, pois exige que
os novos pais façam várias escolhas diariamente, e escolher
é um processo complexo.
Tomemos um exemplo banal: a vida escolar dos filhos.
Recebo, com regularidade, dúvidas dos pais sobre como proceder: acompanhar ou não as lições de casa, estudar ou não
com os filhos, comparecer ou
não às reuniões da escola, impor a leitura de tantos livros
por mês ou não etc. O mais interessante é que, em quase todas as correspondências, eles
dizem que, quando freqüentaram a escola, não tiveram esse
tipo de ajuda dos pais.
A tradição de muitas famílias
de delegar a responsabilidade
escolar aos filhos tem se perdido, portanto. Por quê? Porque o
êxito escolar hoje em dia tem
sido muito mais valorizado.
Temos feito de tudo para dar
aos filhos o que nossos pais não
puderam nos dar, mas, ao mesmo tempo, temos negado ofertar a eles coisas importantes
que herdamos. Talvez seja possível encontrar um equilíbrio
nessa relação.
ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como
Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha)
roselysayao@folhasp.com.br
blogdaroselysayao.blog.uol.com.br
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