São Paulo, quinta-feira, 15 de junho de 2006
Próximo Texto | Índice

Outras idéias

Anna Veronica Mautner

Sentir-se excluído

"Coitadinho" é uma expressão comum para falar de crianças. Levando a linguagem a sério, vemos a criança como destituída, pobre, infeliz, cujas dores os pais se vêem no dever de compensar.
Recorrendo às minhas parcas informações, não conheço outros países com a mesma visão. "Poor little kid" ou "la pauvre" são usados só quando há sofrimento. Não é simplificação, eu atribuo a essa forma de encarar a criança um certo jeito de elas serem aqui entre nós.
Uma vez, em Aruba, pude distinguir rapidamente as famílias da América Central ou do Sul e as de europeus ou americanos. As crianças das primeiras famílias eram impacientes, briguentas, reclamavam, teimavam e corriam pelo salão. Será que o denominador comum seria a existência da "babá"? Ela não é só uma encarregada de cuidar da criança, representa a possibilidade de o casal, apesar dos filhos, não ter de mudar o seu estilo de vida.
É comum aqui uma criança chamar a mãe num tom normal sem ser atendida. Se a mãe ainda não atende, ela apela para o grito. Se a babá estiver presente, cabe a ela distrair a criança. Ensinar boas maneiras demanda esforço, tempo e paciência. Não é no grito. Hábitos são instaurados passo a passo.
Acatar horários de dormir, por exemplo, não é fácil. Adormecer é desligar-se do mundo e, para muitas crianças, pode ser assustador. É por isso que elas se apegam tanto a rituais. Histórias, cantigas e orações não podem ser só quando os pais têm tempo. Têm de ser sempre iguais, para que a criança tenha certeza de que serão iguais também quando acordar.
Quando um casal resolve ter filhos, deve saber que a vida mudará, mesmo que tenha babá, enfermeira e avó para ajudar. Uma criança muda muito a intimidade do casal, mas ela não pode desaparecer. Se os pais defendem demais o seu espaço, o filho se sentirá excluído e passará às retaliações: excesso de demanda. Ser excluído gera uma sensação de aniquilação, uma ameaça psíquica grave. Para uma criança, chamar e não ser atendida soa como "será que eu existo?". Para o adulto, não ser atendido num pedido (hora de dormir, por exemplo) também traz a sensação de inexistência.
O recurso mais comum para se fazer ouvir é falar mais alto. Se a criança tem de lutar muito para se sentir percebida, ela vai encontrar um jeito de chamar a atenção para extinguir a sensação desagradável provocada pela exclusão.
Cabe aos pais reverter o processo, mas isso não se faz com complacência, e sim com uma presença mais consciente. Todo mundo quer se sentir existindo. Ninguém suporta o olho que não o enxerga nem o ouvido que não o escuta.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
@ - amautner@uol.com.br


Próximo Texto: [...]
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.